10º Simpósio de Poetas Bebadxs
O Simpósio de Poetas Bebadxs é um projeto de Andri Carvão e Thiago Medeiros que reúne poetas do Brasil inteiro numa espécie de sarau virtual. O vídeo gravado do encontro fica posteriormente disponível na internet. O 10º Simpósio foi uma apoteose, em que poetas que haviam participado dos anteriores puderam se encontrar novamente. Aqui trazemos alguns dos poemas que foram lidos nesse dia, de autoria de Maya Falks, Andri Carvão, Edmar Scarabello, Isabela Penov, Nina Penov, Sergio Rocha, Wilson Guanais, Vania Clares, Laís Reis, Lia Presgrave, Fernanda de Paula, Thiago Medeiros, Fernanda Limão, Noélia Ribeiro, Iara Maria Carvalho, André Siqueira, Delalves Costa, Felipe Nascimento e Divanize Carbonieri.
***
Reservo a chave das portas do paraíso
Aos inaptos, aos fracos, aos fracassados
Aos que encontram o futuro
No fundo de um copo de vodca
Reservo o mapa do ouro
Aos vagabundos das sarjetas
Aos poetas de botequim
Aos apaixonados de uma noite só
Reservo meus melhores versos
Aos abandonados
Aos desgarrados
E aos que perderam o prumo
A luz que me orienta ao abismo
É a mesma que pisca insana
Sobre a cabeça dos imorais
Em um sarau de beira de estrada
Banhado da poeira da seca
Daqueles que vivem de despedidas
(Maya Falks)
*
O poeta pobre
O poeta pobre era o preferido de Hitler.
O poeta miserável, o poeta faminto.
O poeta devia morrer dormindo.
Mas o poeta se suicida.
O poeta se embriaga e se mata,
bebe até cair na sarjeta,
bebe até morrer.
O poeta é a ponte.
O poeta usa a corda como gravata.
O poeta dá um tiro no peito.
O poeta dá um tiro na boca.
O poeta dá um tiro na ideia.
O poeta é um passarinho de chafariz,
presa fácil para os gaviões.
O poeta que consegue viver da escrita
escreve prosa.
O poeta boêmio. O poeta solteiro.
De preferência sem filhos.
O poeta sem eira nem beira.
O poeta que só dá conta de si e das coisas do espírito.
O poeta pé sujo dorme na rua.
O poeta depende da caridade dos amigos
e dos conhecidos. O poeta na pior
grato por saber que podia ser pior.
O poeta lido por outros poetas,
poetas amigos e detratores.
O poeta é um bicho estranho,
é um troço, um treco esquisito,
um sem lugar.
Poeta bom é poeta morto.
A puizya tem que acabar.
(Andri Carvão)
*
Detergente
Tomamos uma xícara de afeto sem açúcar no café da manhã.
Almoçamos um prato de afeto sem fome.
Jantamos sopa de afeto insosso e fomos para cama.
Dois corpos em silêncio.
Dois desertos áridos cobertos de gelo.
Unidos apenas pela linha do Equador que separa o mundo em dois hemisférios. Você, extremo sul. Eu, extremo norte.
Corpos perdidos transitando uma vida sem bússola, sem norte, sem direção, sem sentido.
Dois corações protegidos do frio dos pólos habitando corpos iglus.
As noites pareciam dias. Com o detalhe de serem ainda mais silenciosas, onde se ouvia o estômago se retorcendo, gemendo de dor, gritando, colocando para fora tudo aquilo que o corpo repulsa. O tudo que não alimenta nada.
Arrotamos o café de afeto amargo.
Vomitamos as refeições de afeto sem gosto.
Defecamos a sobremesa sem afeto.
Voltamos a nos esvaziar.
Novamente dois corpos ocos despovoados de matéria. Balão de ar viajando sem plano de voo. Tão Frágil quanto bexiga prestes a se encontrar com bituca de cigarro. Explosão de ar. Explosão de nada.
Amanhã é dia de nos enchermos novamente.
Tudo serve quando o vazio carece de preenchimento.
Repetíamos todos os dias esse ritual.
Uma espécie de dieta de sentidos para emagrecer a alma e enfraquecer o corpo.
Todas as noites não sobrava nada.
Nenhuma palavra. Nenhum gesto. Nenhum sentido.
Apenas uma pia cheia de louças para lavar.
Esquecemos novamente de comprar detergente.
Precisamos prestar mais atenção nos lembretes que penduramos no ímã da geladeira.
(Edmar Scarabello)
*
VÓS SOIS O SAL DA TERRA
I
sem pássaros no alto
sem peixes no asfalto
ele cega, para e prega
sobre o Cristo
para as coisas
da cidade
Sorri para as baratas
benze imundas pelúcias
e discursa
para as latas
(as latas
entendem melhor que os homens
os trechos que tratam
da caridade)
II
Fedendo a mijo, encardido
de séculos de poeira
e sujeiras variadas
que lhe adubam as chagas
ele sobe na carroça de entulhos
entre os barulhos do trânsito
e prega em transe
para os cães que lhe seguem
famintos, transidos de frio
Fala de Maria, mãe de Jesus
Fala de Jesus, filho de Deus
Fala da cruz e de seus
milagres
e em lágrimas
Fala de Maria, sua mãe Maria
que ficou, quando ele partiu
carregando a cruz da fome
Fala de seu filho, seu filho sem nome
que partiu, mas não ressurgiu
no terceiro dia
e foi aí que ele se partiu
em mil
e, partido, seguiu
caminhante num sempre
adiante por anos
e anos, por vidas
e vidas, por prantos
e prantos
maturando na dor
maturando na dor
até virar santo
08/07/2020
(Isabela Penov)
*
A Lágrima
a minha lágrima é a solidão
ela me levanta no furacão
não caio no chão
mas quando caio meu choro é profundo
minhas lágrimas são do tamanho do mundo
no fundo de uma caverna estarei descansando
e quem se foi estará passeando
(Nina Penov)
*
Assim, feito uma velha folha em branco
Algumas horas quarando ao sol e só o claro absoluto borrado por todos os lados e sentidos, despejado em plena anestesia de sabores e visões.
Algumas horas e há uma calmaria fingida ao fundo, uma espécie de torpor que emudece até a alma. Sinto-me atado aos destroços de um fim de semana laqueado, do qual desperto tantas vezes e tantas outras desvaneço.
O sol nem é sol, é mais um arremedo sobrenatural amarelecido não de si, mas dos olhos que não o suportam; e o claro nem arrefece ou prostra como é próprio das luzes intensas, ao contrário, arrebata, desmemoria toda sorte de quereres, aqueles que nos ferem o coração e o baixo ventre numa sucessão de beijos e arremates, golpes e estocadas, fugas e olhares, olhares impossíveis de sol, sol impossível de festa, pois, precisamente a uma hora dessas toda festa é um princípio de sol borrado por todos os lados.
(Sergio Rocha)
*
ABISSAL
meus olhos
sonhavam dilúvios
eu cavei
com as mãos
um poço
no fundo escuro
do poço
quase
morri afogado
eu cavei
com os olhos
um céu
no fundo falso
do mundo
até que
não pude mais
eu cavei
um poema
e parei
minhas unhas
sonhavam asas.
(Wilson Guanais)
*
DAS JANELAS DOS OLHOS
Os olhos que observam
o lado de fora,
o outro lado,
o que abeira,
é assim como a poesia
e seus mistérios,
dizia o poeta
do mistério das coisas.
Juntar as palavras,
como olhares furtivos
que se encontram
por sorte ou acaso.
O que restará
do filtro, da lente,
senão o absorvido?
Até as feridas
hoje são reflexos,
reminiscências,
relicário farto
do enredo traçado
desde sempre.
Solta nas minhas veredas,
exploro o desenlace
das escolhas perenes.
No santuário outorgado
pela vida desintegro,
nada sou.
Há só o que vi
do outro lado.
E isso é farto.
(Vania Clares)
*
Evocação à cidade em fuga
Não
Não
Não
Nem a que aprendi a amar depois.
Mas uma outra cidade
sem mais nada
três tombos sem radar
vista borrada
um carro no ar
Euclides da Cunha 107 a distância terá morrido
O Gordo! O Gordo!
A mecânica
os rojões no São João no meio da rua
O Gordo me dava biribinhas que eu não tinha força para fazer estourar quando atirava no chão
um sino
Santo Antônio
dos Olivais
eu podia ir ver o fogo
Luís de Camões tinha ring necks e da minha janela eu podia ver o sol descer pela copa dos pinheiros até alcançar o meu calcanhar.
São Bernardo – São Paulo – 27 de Outubro
São Bento
e se contar a chuva até São Pedro
o passo vai sozinho
alguém sabe o caminho
então pode se perder
Pernas Pernas
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
Por puro prazer
percussionistas provocam pombas
ouvem os pedreiros que plantam prédios nas pista e os
pedintes profissionais que perguntam por problemas primordiais
Perambulantes pela paisagem
Pare e pense.
uma placa entregou um pedaço de homem para o pedestre
peripatético em pluralidade provocativa.
A poesia é a poeira perpétua que se acumula sobre as memórias.
03h22
na varanda do quarto andar
venta
por detrás desta rede de proteção
uma noite
eu vi
a lua mudar três vezes de posição sobre a cidade e sem rastros desaparecer
por detrás da sombra de um prédio.
destroços redemoinho sumiu
Cidade em fuga.
Ainda que impregnado de eternidade
eu sempre soube
que acabaria.
(Laís Reis)
*
ANIMAL CORDIAL
Por ser civil, contemporizar
com o animal que me desgasta
Nessas frouxas conversas
trouxas são as violências
O glossário nem é vário
De cor já se sabe o léxico
Por ser isso
cordial animal
saber de cor, dialmente
o fio o gosto o tom a cor
do corte da navalha que me corta
Estar pronta a esperar
o próximo talho
Viver como quem desmaia
prendendo a respiração
fingindo-se de morta
Morrer por questão de segurança
antevendo o corte
Nesse filme de horror
um body horror entranhado
animal cordial
prontamente mutilado
amotinado, revolvido
ninguém entendeu
que o monstro sou eu
invertido
(Lia Presgrave)
*
Maria dormiu. Não sei se pela tristeza que o cansaço guarda ou porque era mesmo madrugada. Sucumbiu ao sono depois de, igual criança, lutar para manter os olhinhos abertos e dar conta de tudo, como fazem os anjos. Entrou na pupila do sonho, com seu sorriso aberto e os ossos puídos de espera. Porque ninguém dá conta de tudo – nem mesmo Maria, com sua doçura sólida. Maria, alma dividida entre o rio e o mar, devia ter cantado mais. E, quando a vida se desdobra entre seca e tempestade, escuto a música dos seus olhos iluminando as manhãs de sábado. Nosso espelho antigo, embaçado pelo correr do tempo, ainda reflete só o lado mais belo. Seu jardim de antúrios, mirras e orquídeas ainda vive entre as montanhas de tantos corações. Quem cuida dele são os beija-flores, os pardais a chuva. Então dorme, Maria! Descansa dessa vida, que está acabando outra vez um seu dia.
(Fernanda de Paula)
*
TALVEZ SEJA TUDO FICCIONAL
não tenho vontade
de escrever sobre
isso
mas ela se repete
repete
repete
e sempre tive medo
de palavras depois
de escritas
há uma realidade
nelas
em
todo
caso
um dia decidiu
imprimir
todos os poemas restantes
encadernou
e enviou pelos
correios
junto a telefones
e contatos de
prováveis editores
enviou
para a última pessoa
que teve seu coração
nas mãos
e essa pessoa
engoliu tão
rápido
que não saberia
dizer se há
sabores
em
todo
caso
mandou os livros
com telefones e
contatos
e um bilhete
sempre disse que são seus
algumas promessas ainda
sei cumprir
tudo arrumou
lavou pratos de
semanas inteiras
embora só conservasse
três
fumou cigarros
talvez disso
sentiria falta
e aguardou
estrelas cadentes
sobre as têmporas
e fez tudo isso
porque pode ser
que alguém um dia
escreva
sobre
e fez tudo isso
porque achava
que havia teatro
e cortinas vermelhas
e fez tudo isso
porque achava
que alguém um dia
leria
sobre
e talvez achasse
bonito
não há beleza alguma
sobre nossas culpas
quando vistas de perto
de
muito
perto
mas de longe
em linhas escritas
todos chamarão
de poesia
e
era só
culpa
e
nunca
sabemos
de
quê
(Thiago Medeiros)
*
Nem sei mais há quantos dias avisto as mesmas paisagens.
Não me acostumei ainda com tantas fronteiras, nem a andar em círculos.
Esbarro nas quinas sempre que me distraio com qualquer pequena novidade, e assim coleciono
manchas roxas nas pernas e braços.
Eu não sabia que tinha tantas cicatrizes, em cada espelho da casa encontro uma nova.
Venho convidando saudades para visitar as lembranças. São encontros animados, quase festas.
E a casa vive cheia.
Nem é fim de ano, mas fiz algumas promessas pros tempos vindouros.
Umas tantas listas.
Quem sabe?
As horas nem estão custando tanto.
Notei uns tons alaranjados novos nos fins de tarde.
E minha rua parece cada vez menor.
Preciso rever medidas.
Está tudo muito perto. Ainda bem que não tenho claustrofobia.
Venho abrindo mais as janelas, pra ver o dia.
Os muros não impedem meus vôos domésticos.
Tenho mantido os pés no chão, sempre que impossível.
Nesse momento não é bom navegar, o mar não tá pra rede.
Já fui boa na pesca. E agora até que sobra tempo, mas sinto pena das iscas.
Hoje não choveu.
Não esfriou.
Está tudo no mesmo lugar.
E cada lugar, já é outro, quando amanhece.
E mesmo estando lá, ninguém sabe onde está.
(Fernanda Limão)
*
NENHUMA POESIA NO REAL
Para fazer um poema
O poeta invoca palavras e ideias.
As janelas possuem algumas. Os livros também.
A TV aponta 30 mil mortos pelo vírus.
O bem-te-vi dá uma palhinha do que o real
seria se não fosse o que é.
As formigas antifascistas trabalham juntas.
Que tal caminhar em volta da mesa?
Os porta-retratos parecem um bom começo.
O poeta escreve, escreve, escreve.
Arruma e desarruma versos.
Abre a fecha dicionários e saídas.
E sorri para o poema quase infalível.
Á noite, a nota subitânea:
Enquanto Mirtes segurava uma
coleira, seu filho de 5 anos caía do nono.
O poema desencarna.
O poeta perde o sono.
(Noélia Ribeiro)
*
A MESA, A MESA
na malha fria dos anos passadiços
mainha costurou uma toalha de mesa
bordada de azuis num recanto muito íntimo
espalhada em doçura
com néctar de frutas pintadas em molde vazado
todo fim de tarde
mainha organizava silenciosamente
um ritual todo passivo e todo secreto
a poeira em átomo desfeita
a broa feito borra de alimento
o mel circuncidado
o jogo de luz entre as telhas
a jarra
a jarra
e o zunir incandioso da água
se fartando num caneca de ágata.
(Iara Maria Carvalho)
*
Inválida mão, pés decepados, rugir
estomacal, preguiça de ser qualquer
um
porque na beira do precipício o
grunhido é o meu coração.
Irmã bondosa despetalou o rio
em mim. Preciso de terra para
tacar meu sono de quem percebe
o chiar das horas carnívoras sem
as presas para me açoitarem
comprimidas no farfalhar do
passado, agora em prantos segurando
dedos pavorosos na invalidez
do tato.
Buracos à vista. Já escrevo tudo
errado para não ter que te mostrar.
Depois da correnteza vem o sal
da bonança.
Já não posso te poupar
porque no vácuo eu me esgarço
e vacilo na preguiça de qualquer
pincelada desbotada do futuro.
Tento me fisgar. O gosto me persegue
à tarde, e à noite, no canto do
quarto, a fera palita os dentes.
(André Siqueira)
*
Cobertor-jornal
E de quebranto, o céu da minha boca
conheceu a Noite. A criança
levada de rua, pelos cabelos
arrastada posta aos olhos do caos.
Sempre que nos sepultam
neste mundo vaidoso, condolente,
um súbito mau-olhado desalinha-
se os gritos a infância toda
pede socorro a quem cerra os dentes.
Quer-se fôlego? Suplica-se!
Lua, estrelas de férias no bocejo
não iluminam o cobertor-jornal
sobre o feto já sem útero.
Nessas horas ninguém vê nada:
até vento atravessa a rua
para não acordar a pátria
entre as notícias que já não sonham.
(Delalves Costa)
*
Havia jabuticabas no chão da firma.
Pisar jabuticabas é como pisar em olhos
E cada vez que eu andava, ia cegando a cidade.
Cada vez que eu andava, sentia a culpa e angústia.
Mas era preciso guardar para si,
Homens apenas trabalham trabalham trabalham.
Homens da minha classe não podem sentir a delicadeza.
Perceber no tato os próprios dedos.
Os homens estão condenados a pinga, a cachaça.
E bater nas suas mulheres em casa.
Os homens estão condenados a burrice de outros homens,
Estão condenados a gritos.
Tentando ser corajoso que é covarde
(Matou a mãe de três filhos)
Tentando manter a honra
(Matou a filha e o namorado)
A liberdade é uma palavra que só existe nas faculdades de economia
(Felipe Nascimento)
*
ENTRAVES
no afã de desligar o liquidificador
deslocou o tendão de aquiles
depois de ter lesionado a coluna
ao acionar o interruptor da lâmpada
tendo dilacerado a hérnia inguinal
ao colidir com a máquina de lavar
foi só estancar a hemorragia fluida
e distensionar o músculo deltoide
para desarrolhar o gargalo oblongo
espirrando o espesso licor no olho
até conter a lágrima no pó compacto
mais uma quina a estraçalhar seu pé
um talho rasgado em plena epiderme
não é qualquer falha de caráter que torna
arrastado o existir por entre trastes
é o completo sequestro da sanidade
que arruína para sempre toda a chance
de se desentulhar os últimos entraves
(Divanize Carbonieri)
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Para ver o vídeo do 10º Simpósio de Poetas Bêbadxs: