Schau mich an – um poema de Terezinha Malaquias
Schau Mich An – Olhe Para Mim é obra audiovisual composta de diversas fotos aparentemente aleatórias, tiradas para serem meros instantes fugazes do cotidiano da poeta, performer e artista plástica multiplataforma Terezinha Malaquias. Tanto que o trabalho é feito de pequenos registros dispostos em conjuntos de frames ordenados em vídeo, após retirados do acervo pessoal dela no Instagram.
Ocorre que Terezinha Malaquias é artista de vulto, plenamente consciente da potência de sua voz poética e conhecimento equivalente das várias técnicas do labor artístico envolvidas em sua criação.
Provas disso saltam aos olhos em seu trabalho — a exemplo, a técnica de animação de fotografias aqui utilizadas, de modo a ordená-las em uma sequência lógica, a compor uma narrativa, hoje popularizada (e banalizada) por novos softwares (apps).
Crianças dos dias que correm fazem mágica com essas técnicas.
A exemplo, minha filha ainda não fez 10 anos, mas domina todas as versões grátis desses adensamentos de algoritmos e consegue reproduzir praticamente qualquer coisa, ainda que (ainda) com a baixa qualidade de resolução de vídeo que caracteriza as versões abertas desse tipo de programa.
Tantos que listar todos aqui seria perda de tempo e gasto inútil de linha, pois em dois meses estaria completamente defasado. Movimento banal, brincadeira de criança, se apressariam em dizer os tão ansiosos jovens de nosso tempo, entre os quais inclui-se minha cria.
Conversando sobre seus vídeos feitos em Kinemaster, toma um susto quando digo que ela sequer iria querer saber como um vídeo, desenho ou filme eram produzidos se tivesse nascido somente 10 anos antes.
Ao susto, tranquilizei que o motivo era simples. São técnicas cujos esboços foram criados ainda na antiguidade e aprimoradas ao longo de milênios. A última transição no processo — de impressão e reprodução de impressão — foi relativamente curto: 500 anos, a considerar a primeira Bíblia de Gutenberg e a aparição do primeiro smartphone.
O trajeto até aí, porém, foi espinhoso, desértico e remonta há pelo menos 5 mil anos. A menina tranquiliza e dá a pista: “como no tempo das pirâmides e múmias?”. E eu respondo: sim, desde o tempo das primeiras travessias.
Especificamente sobre o vídeo aqui tratado, o que antes demandaria uma caixa de ferramentas grandes demais para pequenos movimentos de pinça em indicadores e polegares infantis e de cuja periculosidade pais mais responsáveis afastariam, hoje, só existem porque ainda há outros usos e que também vão morrer, pois suas novas versões não demandam mais aço, fundição, bigorna e martelo, mas pixels, linhas, códigos de comando e números.
Acontece que sequências de fotos animadas já foram o pesadelo maior dos editores de outro tempo. Técnicos de mesas de edição linear (mecânica, analógica) eram verdadeiros artesãos à moda do mundo antigo, munidos de tesouras, gabinetes, fitas k-7, cabeçotes, câmaras de rolos de fitas, um motor movido a energia elétrica e, claro, botões, muitos botões.
Não meros ícones com cada uma dessas ferramentas, dispostas numa tela de 6 milímetros, como são hoje, nos celulares, tablets e laptops. Eram instrumentos dispostos sobre uma mesa de, no mínimo, 2×2,5m.
Parecem digressões saudosistas de um breve século 20 que sepultou milênios de história humana (ver Jared Diamond e seu Armas, Germes e Aço e, muito mais recentemente, Yuval Noah Harari e seu Sapiens: Breve História da Humanidade), mas não são. Trata-se aqui de atos carregados de verdades e derivações simbólicas ainda hoje.
Para retornarmos à obra de Malaquias, mulher de caráter doce e afável a ponto de forçar à memória a imagem do um dia famoso burrinho Platero, aquele nobre, forte, valoroso e tão resoluto ser que escondia uma estrutura de aço — sólida, inquebrável, cortante — abaixo de uma aparência feita de algodão.
Iria falar sobre esse livro tão rico (Platero e Eu) e seu autor, o espanhol Juan Ramón Jiménez (1881-1958), mas Margareth dos Santos já o havia feito à Revista Cult, em sua edição 146:
Juan Ramón Jiménez ocupa um lugar central na conformação da lírica espanhola do século 20. O poeta, que se definia como o andaluz universal, encontra nesse achado conceitual a fórmula capaz de articular uma postura que revelava a tensão entre a identidade particular e as verdades objetivas do mundo. Ao definir-se como andaluz universal, o poeta equilibrou-se entre o permanente esforço do particular sem abandonar o universal, na ação de encontrar o universal graças à identidade.
E aqui adentramos ao leitmotiv de Terezinha Malaquias, pois é onde começa o jogo de separação de substâncias e impurezas, à moda dos antigos alquimistas. Ciente da imprescindibilidade do pleno domar de habilidades táteis até torná-las simples em aparência e morando há 11 anos em Freiburg, Alemanha, a artista acabou retratando-se em um não lugar ideológico, social, concreto.
Não como choro, mas sim como a representação de muitos gritos abafados em séculos de desumanização forçada.
Como bem o sabe qualquer brasileiro na Europa, por mais que o alto nível educacional dos alemães facilite a vida, estrangeiros jamais são verdadeiramente integrados por lá, assim como pretos também não o são aqui, no Brasil. Exceto se apresentarem excepcionalidades em ramos de trabalho e saber já cuidadosamente escolhidos para serem admitidos, notadamente música popular, esportes e trabalho físico.
Não é o caso dela. Artista formada pela Edith Maryon Kunstschule Freiburg (Alemanha), escritora, poeta, modelo vivo, performer, pintora, autora dos livros Modelo Vivo I e II e Menina Coco (bilíngue, português/alemão), com participação em antologias no Brasil, Estados Unidos, Alemanha e em Portugal.
E, como tal, foi mais uma devidamente colocada na prateleira dos artigos raros, de luxo, com obra cuidadosamente guardada para ser descoberta em outro tempo. Elaborada demais pro Brasil, preta demais pra Alemanha.
Sua capacidade de transitar entre diferentes repertórios estéticos foi decisiva para que se configurasse como um poeta singular na tradição moderna espanhola. E é dessa capacidade de trânsito entre diferentes propostas poéticas que surge Platero e Eu, grande representante da relação entre o espaço natural e o da cultura”.
Não há como discordar da sentença de Margareth dos Santos sobre Platero e muito menos esquecer as palavras do próprio Jimenez sobre sua obra: um livro em que a alegria e a dor são gêmeas, como as orelhas do bicho, composta não sei para quem, como não se sabe para quem poetas líricos escrevem. “Já que é para crianças, não lhe tiro nem ponho uma vírgula”. E está ótimo. Teóricos teorizam, artistas talentosos arrebatam.
É o que ela faz, discreta e silenciosamente, numa reprodução técnica de uma arte milenar antiga dominada há muito pelas mulheres pretas do Brasil. De sobreviver de pouco, mesmo carregando em si o tesouro de toda alegria e dor do mundo e, como fazem com todo pão que produzem, reparti-lo.
Ora por meio de um sorriso, ora de um olhar assustado, na maior parte do tempo perplexo, curioso como todos nós conseguimos ser até por volta dos 12 anos, quando a maioria desiste de sonhar, “amadurece” e se entrega ao ciclo da milhagem da vida, onde o boleto pago passa a ser objetivo principal do existir e o crediário — não nas Casas Bahia, que isso é coisa de pobre — na loja da Apple transmuta-se em felicidade e realização supremas.
Como Jimenez, seu eu lírico e o burrinho dão luz à beleza das paisagens naturais da Andaluzia, com as relações humanas como relevo a marcar a passagem do tempo, assim também se percebe nas imagens de Malaquias umas horas roubadas de verão, em outras, de inverno, assim como paisagens verdes e outras, ausentes de sol, mas recheadas de neve.
Tudo numa palheta tão variada de cores, sentimentos e até sons capturados com rigor e apuro técnico, enquadramentos perfeitos e trilha sonora original ao fundo, de piano, que parece ser impossível encerrar este sem contradizer seu princípio. Não é. Como Terezinha Malaquias, é preciso respeito e olho vivo às obras artísticas, não à assinatura de quem a indica.
É a única maneira de enxergar além do que só se vê, essa tão ancestral habilidade infantil.
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A foto da capa deste post é de autoria do fotógrafo Luiz Carlos Lhacer.