50 formas de se dizer maravilhoso – Por Hugo Lorenzetti Neto
Na coluna mensal “Jerônima” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), a bonita Hugo Lorenzetti Neto nos traz – no melhor estilo eu-miss-desejo-a-paz-mundial – traduções de autoras e autores de diversas línguas e partes do globo. Diplomacia com plissado rosê. Regras: 1) cada coluna é um baile temática, os textos traduzidos têm um tema em comum; 2) uma espécie de ensaio inédito do colunista amarra sempre as traduções. A coluna irá ao ar sempre na última quinta-feira do mês.
Hugo Lorenzetti Neto é diplomata e tradutor, e atuou quase toda sua carreira, de 2006 até o momento, na área cultural do Itamaraty. Atualmente lotado no escritório do Ministério em Recife, oferece oficinas de escrita e realiza clubes de leitura, além de divulgar poesia em seu projeto O Caderno Rosa (@ocadernorosa, no Instagram).
***
50 formas de se dizer maravilhoso
Vai parecer propaganda. E é. Como ando dizendo a minha amiga Letícia, que veio me fazer companhia nos últimos dois meses e tornou a vida mais fácil: depois de quase 43 anos sofrendo esta vida, vão sair ao mesmo tempo meus dois primeiros livros de poesia. Tem que sofrer e ser uma superação e tal, né, Zeitgeist. Mas meio mentira. Meio. Muito. Finge ser a dor etc. e tal. Quando você pensa muito em escrever poesia dá um terereco, não sei. Né? Não sei mesmo. Mas enfim, até a próxima coluna, 24 e A máquina extraordinária estarão em pré-venda, se não lançados mesmo.
Mas e a coluna que que tem com isso?
Ao mesmo tempo, terminei dois projetos: o terceiro livro, Matinée, e uma tradução de The soul of man under Socialism, que ficou como A alma humana sob o Socialismo. Produtivo, não? Estar removido da rotina de um escritório de paredes brancas em um edifício construído por grande empreiteira ao lado de um shopping, com vista para mais edifícios construídos por grande empreiteira ajuda muito. Nem todo mundo tem essa sorte, eu não lamento por ninguém, não. Tenho ódio de classe mesmo.
E a coluna com isso?
É que entre esta coluna e a próxima será meu aniversário. Dia 18 de setembro. Queria de presente uma alma virginiana do estereótipo, porque, sério, a vida é dura e desorganizada. Pode mandar parabéns pra mim no meu @ocadernorosa no Instagram.
A coluna é minha, foi a onça que me dinha.
Mas vamos falar de tradução. O Wilde, esse vai sair pela editora Coragem, lá do Rio Grande do Sul, e eu vou estar por lá, acho, quando sair. Bem, quem escreveu foi Wilde, então oficialmente não tenho nada a ver com isso. É muito bonito o tradutor manifestar sua teoria e eu manifesto a minha. E aparecer e tudo e tal. Sabe o que é? A gente tá solteiro ou se tá casado deve estar meio insatisfeito. Aventuras para brilhar os olhos e tal. Ou sei lá. Todo mundo tanto tempo sem paquerar… bem que os aplicativos podiam morrer depois disso. Cringe isso de esperar mudanças do mundo depois que ele quase morreu de trombose no pulmão, TÃO 2020.
TRADUÇÃO. O título trocando Man por Humana é coisa da editora. Eu até gosto. Cheguei a pensar em A Alma das Pessoas sob o Socialismo, mas Humano é mais elevado, acho. Sonoro. Concedi para parar de pensar no assunto, confesso. Humano é elevado? A gente sabe materialístico-historicamente que a gente anda mais burro mesmo por causa das múltiplas regressões de tudo. A gente sabe que a ideia de humanidade exclui quem não é civilisé. Mas alguma palavra tem que ir e a gente pode pensar, a partir das muitas coisas que lê, sobre essas questões. Direitos Humanos têm sido os de quem? Eles são uma coisa boa e bela? Sim. Para todo mundo? Então.
Wilde assume sem equívoco que trabalhar é ruim e a gente sabe que trabalhar não só é ruim: trabalhar CANSA (grazie, Pavese), além disso destrói o mundo. Danifica o homem, como disse Maguila, o pugilista. Bota fogo nas coisas e mata animais – que no fogo morrem gritando, estava assim nas notícias. Wilde pode não ser o maior economista, nem o maior planejador de revoluções, mas de desejo ele entendia e muito. Desejar não trabalhar é bonito. Tente aí em casa. Por mim. Me dê razão nessa sem me contestar, presente de aniversário: trabalhar é péssimo. Wilde propõe escravizar máquinas, mas na impossibilidade disso, pensei outro dia e conversei com Ismar Tirelli Neto: quatro horas por dia, quatro dias por semana, o que você topa fazer? Ele disse que dava aula para crianças. E eu fazia comida para minha comunidade próxima. Depois: poesia. Escrever, traduzir. Dar oficinas. É trabalho isso? Não. Não seria preciso enlouquecer pensando em engajamento nas redes sociais (que o sonho é meu e eu sonho que deixariam de existir). Nem ficar uma vida esperando um email de resposta de uma editora de poetas tão descolados quanto tu (olá, editora A; olá editora B). Trabalho é ruim e se fosse bom chamava CHOCOLATE 85%.
Wilde, logo na abertura do ensaio diz que o Socialismo nos liberaria da sórdida necessidade de viver para ou pelos outros. Tem essa ambiguidade do “live for other people”, essa preposição difícil – acabei colocando “para” e sofro por não ter posto “pelos.” Sofreria igual, tivesse escolhido o vice em vez da versa. Há um texto de Justin Torres falando sobre a precariedade da vida de seu irmão que fala disso, e que li em estado de comoção depois de We the animals, de que já falei, com certeza, nesta coluna. O irmão, que prefere ser chamado de mendigo a qualquer fórmula limpa, rechaça a caridade como se seguisse a Wilde quase manualisticamente. No romance, um dos momentos mais lindos é quando o personagem central se isola num buraco com lama e consegue fazer com que o mundo funcione de acordo com suas percepções para que ele finalmente consiga desejar. Wilde quer desaparecer no mato para escrever e não precisar de nada: claro porque a companhia decidiu enviá-lo à cadeia de Reading por ele ser quem era. Acho que pensar exatamente em como a economia se organiza é secundário no que diz respeito a esse ensaio, e, como disse Gertrude Stein a uma assistente de sua palestra indignada pela falta de feminismo (segundo a assistente) na alocução: nem tudo é sobre tudo. E ninguém pede completude a Marx, não é mesmo? Marx lindo, sim, e tudo e tal. Mas o que é chamado, numa escolha vocabular misógina e homofóbica, de frívolo em Wilde é fundamental para uma vida feliz. Se não for pra você, tudo bem, o menino que eu gosto concorda comigo. Vá comer chocolate ruim cheio de gordura hidrogenada.
O que importa: Wilde usa marvellous um monte de vezes. Na primeira versão traduzi quase sempre como maravilhoso até que me ocorreu: why not? E fui atrás de 50 formas de se dizer maravilhoso. Porque me lembrei do menino gordinho de um filme neozelandês que foi livro antes chamado 50 ways of saying fabulous, sou seja, 50 formas de se dizer fabuloso. O título veio de um insulto, como veio o viado que a gente usa com propriedade e charme hoje em dia. Gays são pessoas que sabem cinquenta forma de se dizer fabuloso. Ainda bem, não é mesmo? E aí, olha, que palavras lindas existem para dizer maravilhoso. Todas combinam com jogar o pescoço para trás e se abanar com um leque. Coisa linda e fina. Não é para qualquer um. Nem coloquei todas para não dividir completamente o conhecimento. A gente sabe. Quem não é a gente, que se vire em sua vida menos maravilhosa.
E essa teoria que exponho aqui, que não é muita, diz algo sobre como vejo por enquanto a tradução queer. Queer que traduz queer. Quem a gente escolhe traduzir e quem escolhem para que a gente traduza. A flamboyance do maravilhoso. Corta homem; bota pessoa ou humanidade no lugar. Traduzir profissões no feminino: a artista, a pescadora. Fazer plural no feminino: mulheres e homens cansadas. Ah, mas a regra. Se incomoda demais: conversa com alguém, por exemplo, Freud. Não era para doer tanto. A gente está bem à pampa de ser o incômodo e se incomodar. Fui colocando pequenas coisas, imaginando como Wilde falaria comigo. Com você. Tenho fé de que quem lê essas coisas que escrevo é queer no sentido mais amplo de pessoa estranha, estragada e recusada pelo comercial de margarina. Tudo bem se você é um rapaz e tem a tua namorada, contanto que goste de Bangles, ou coisa parecida.
Não sei como Wilde falaria comigo, mas como eu queria dar uma abraça nele e dizer: thank you, my foremother.
A gente precisa querer o Socialismo, e o sonho tem que ser o sonho exatamente como sonhado. Vai dar zica na prática, é coisa sabida. O cálculo já sabe que vai, e orienta alternativas. Deveria orientar, não orienta de verdade, porque deixa de lado o desejo de igualdade, a raiva contra a propriedade privada e o desejo de seu fim. O desejo do fim de todo o sofrimento e da vida que nos deixa a todos sem exceção confortáveis e em paz.
É isso, são meus votos de meu aniversário para quem lê aqui. Pode me dar parabéns, já disse, é dia 18.
Aqui vem o maravilhoso:
Socialism annihilates family life, for instance. With the abolition of private property, marriage in its present form must disappear. This is part of the programme. Individualism accepts this and makes it fine. It converts the abolition of legal restraint into a form of freedom that will help the full development of personality, and make the love of man and woman more wonderful, more beautiful, and more ennobling. Jesus knew this. He rejected the claims of family life, although they existed in his day and community in a very marked form. ‘Who is my mother? Who are my brothers?’ he said, when he was told that they wished to speak to him. When one of his followers asked leave to go and bury his father, ‘Let the dead bury the dead,’ was his terrible answer. He would allow no claim whatsoever to be made on personality.
And so he who would lead a Christlike life is he who is perfectly and absolutely himself. He may be a great poet, or a great man of science; or a young student at a University, or one who watches sheep upon a moor; or a maker of dramas, like Shakespeare, or a thinker about God, like Spinoza; or a child who plays in a garden, or a fisherman who throws his net into the sea. It does not matter what he is, as long as he realises the perfection of the soul that is within him. All imitation in morals and in life is wrong. Through the streets of Jerusalem at the present day crawls one who is mad and carries a wooden cross on his shoulders. He is a symbol of the lives that are marred by imitation. Father Damien was Christlike when he went out to live with the lepers, because in such service he realised fully what was best in him. But he was not more Christlike than Wagner when he realised his soul in music; or than Shelley, when he realised his soul in song. There is no one type for man. There are as many perfections as there are imperfect men. And while to the claims of charity a man may yield and yet be free, to the claims of conformity no man may yield and remain free at all.
Individualism, then, is what through Socialism we are to attain to. As a natural result the State must give up all idea of government. It must give it up because, as a wise man once said many centuries before Christ, there is such a thing as leaving mankind alone; there is no such thing as governing mankind. All modes of government are failures. Despotism is unjust to everybody, including the despot, who was probably made for better things. Oligarchies are unjust to the many, and ochlocracies are unjust to the few. High hopes were once formed of democracy; but democracy means simply the bludgeoning of the people by the people for the people. It has been found out. I must say that it was high time, for all authority is quite degrading. It degrades those who exercise it, and degrades those over whom it is exercised. When it is violently, grossly, and cruelly used, it produces a good effect, by creating, or at any rate bringing out, the spirit of revolt and Individualism that is to kill it. When it is used with a certain amount of kindness, and accompanied by prizes and rewards, it is dreadfully demoralising. People, in that case, are less conscious of the horrible pressure that is being put on them, and so go through their lives in a sort of coarse comfort, like petted animals, without ever realising that they are probably thinking other people’s thoughts, living by other people’s standards, wearing practically what one may call other people’s second-hand clothes, and never being themselves for a single moment. ‘He who would be free,’ says a fine thinker, ‘must not conform.’ And authority, by bribing people to conform, produces a very gross kind of over-fed barbarism amongst us.
*
O socialismo aniquila a vida familiar, por exemplo. Com a abolição da propriedade privada, o casamento em sua forma atual deve desaparecer. Isso faz parte do programa. O Individualismo aceita esse fato e o transforma em algo desejável. Ele converte a abolição da restrição legal em uma forma de liberdade que ajudará no pleno desenvolvimento da personalidade, e tornará o amor entre seres humanos mais maravilhoso, mais bonito e mais enobrecedor. Jesus sabia disso. Ele rejeitou o chamado da vida familiar, embora aceitá-lo fosse a norma em sua época e em sua comunidade. Quem é minha mãe? Quem são meus irmãos? disse ele, quando lhe contaram que desejavam falar com ele. Quando um de seus seguidores pediu para partir e ir enterrar seu pai, ‘Deixe os mortos enterrarem os mortos’: essa foi sua terrível resposta. Ele não permitiria que qualquer pressão social fosse exercida sobre a personalidade.
E, assim, a pessoa que levaria uma vida semelhante à de Cristo é aquela que é perfeita e absolutamente ela mesma. Pode ser uma grande poeta ou um grande cientista; ou uma jovem estudante de uma universidade, ou alguém que observa ovelhas na charneca; ou um fazedor de dramas, como Shakespeare, ou alguém que pense sobre Deus, como Spinoza; ou uma criança que brinca no jardim, ou uma pescadora que lança sua rede ao mar. Não importa quem seja, desde que perceba a perfeição da alma que está dentro de si. Toda imitação de padrão moral e de forma de vida é errada. Pelas ruas de Jerusalém atualmente rastejam loucos que carregam cruzes de madeira nos ombros. Eis um símbolo das vidas que são prejudicadas pela imitação. O Padre Damião era semelhante a Cristo quando saiu para viver com os leprosos, porque nesse serviço percebeu plenamente o que havia de melhor em si. Mas ele não era mais semelhante a Cristo do que Wagner quando realizou sua alma na música; ou do que Shelley, quando realizou sua alma na canção. Não existe um tipo único de pessoa. Existem tantas perfeições quanto há pessoas imperfeitas. E quanto às reivindicações da caridade, pode-se ceder e ainda ser livre; mas às reivindicações de conformidade ninguém pode, de modo algum, ceder e permanecer livre.
Individualismo, então, é o que devemos alcançar por meio do Socialismo. Como resultado natural, o Estado deve desistir de qualquer ideia de governo. Deve desistir porque, como um sábio disse certa vez muitos séculos antes de Cristo, é possível deixar a humanidade em paz, mas não é possível governar a humanidade. Todas as formas de governo são fracassadas. Despotismo é injusto com todos, inclusive com o déspota, que provavelmente foi feito para coisas melhores. Oligarquias são injustas para muitos e oclocracias são injustas para poucos. Já houve grandes esperanças na democracia; mas democracia significa simplesmente o espancamento do povo, pelo povo e para o povo. Já se descobriu. Devo dizer que já era hora, pois toda autoridade é degradante. Degrada aqueles que a exercem e degrada aqueles sobre os quais é exercida. Quando é usada com violência, estupidez e crueldade, produz um bom efeito, porque cria, ou pelo menos traz à tona, o espírito de revolta e Individualismo que vai matá-la. Quando usada com certa dose de gentileza e acompanhada de prêmios e recompensas, é terrivelmente desalentadora. As pessoas, nesse caso, são menos conscientes da pressão horrível que está sendo posta sobre elas, e assim passam por suas vidas em uma espécie de conforto rude, como animais domesticados, sem jamais perceber que provavelmente estão pensando os pensamentos de outras pessoas, vivendo pelos padrões de outras pessoas, vestindo o que praticamente se pode chamar de roupas de segunda mão, e nunca sendo elas mesmas por um único momento. “Quem desejar ser livre”, diz um bom pensador, “não deve se conformar”. E a autoridade, ao subornar as pessoas para que se conformem, produz um tipo muito grosseiro de barbárie superalimentada entre nós.