A bailarina e o saci – um conto de Wuldson Marcelo
A bailarina e o saci é um dos contos que integram As luzes que atravessam o pomar, o primeiro livro infanto-juvenil de Wuldson Marcelo, um dos editores do Ruído Manifesto, que logo chegará ao público. A obra, composta por oito estórias, é uma publicação do selo TantaTinta, da editora mato-grossense Carlini e Caniato, e conta com ilustrações de Lua Brandão. As luzes que atravessam o pomar foi um dos projetos contemplados no edital 2017 de Fomento à Cultura da Secretaria de Cultura, Educação e Turismo da prefeitura de Cuiabá.
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A bailarina e o saci
Esta estória envolve dois irmãos gêmeos bivitelinos, isto é, não idênticos. Toninho e Amanda. Eles contam 9 anos de existência. No entanto, esta estória também envolve dois brinquedos: uma bailarina, a favorita de Amanda, e um saci, o predileto de Toninho. Sentem-se que lá vem o conto.
Os brinquedos estavam enamorados. Apaixonaram-se na Casa dos Sustos, um enorme brinquedo de Amanda, que tem monstros, esconderijos, chão movediço e uma bruxa, que era tipo a heroína do lugar. Sempre que Toninho e Amanda deixavam o quarto, os brinquedos ganhavam vida e se embrenhavam na exploração de um mundo animado e do amor.
Tudo ia às mil maravilhas. Era primavera. Teve recesso escolar, festival de flores, visitas ao interplanetário e jogos de basquete. Toninho e Amanda eram craques no basquete. Mas, certo dia, em uma tarde com calor intenso e trovões, paradoxos e contrassensos, os gêmeos brigaram por causa do controle remoto da TV a cabo. Toninho queria ver a final europeia de basquete masculino e Amanda desejava assistir “Mad Max: Estrada para a Fúria”. Entre quedas, gritos e beliscões, o controle se espatifou no chão e ambos foram punidos com dois dias de castigo, sem diversão alguma. O saldo do confronto foi além. Os irmãos decidiram que cada um teria o seu quarto. Nove anos dormindo um ao lado do outro e uma simples briga pelo controle remoto trouxe o desejo de separação. Mas, quem não queria se separar de jeito nenhum eram a bailarina e o saci. Ele pulando, salto a salto, alcançou o seu amor e a tomou nos braços.
– Temos que fazê-los mudar de ideia. – Disse o resoluto saci.
– Como poderíamos fazer isso, se nem nos ouvir eles podem? Abraçados, ficaram a elaborar maneiras de dissuadir as crianças da decisão intempestiva. Os pais de Amanda e Toninho passaram a considerar uma boa ideia os filhos terem os próprios quartos, pois assim sentiriam falta um do outro e perceberiam o quanto foi tolo o modo como resolveram a divergência entre eles. Para o desespero da bailarina e do saci, a mudança se concretizou. Mas, Amanda não ganhou um quarto próprio, teve que dividir espaço com Rafael, o caçula de 4 anos.
– Só por que eu sou menina, não é? – Interrogou Amanda. A vida seguiu seu curso, recesso escolar acabando, dias de chuva, dias de sol. Porém, o conflito se acirrou, pois Amanda passou a dificultar o acesso de Toninho ao quarto de Rafael. De longe, o saci lançava olhares apaixonados para a bailarina.
De noite, com as portas dos quartos abertas, os brinquedos juravam amor eterno, no que eram acompanhados pelo cão Tiranossauro, dono do corredor e de toda extensão do portão ao sótão. Qualquer coisa que encontrava pelo caminho ia parar em sua cama na varanda, mordida, babada e, posteriormente, enterrada nas areias escaldantes do quintal. O saci imaginava como driblar o cãozinho e se atirar nos braços da bailarina.
– Tenho que ludibriar esse estraga-prazeres de quatro patas. – Tramava o saci, todas às noites.
Uma noite, Amanda levantou para pegar água, a porta do quarto ficou entreaberta. A bailarina sentiu que aquele era o momento tão esperado para rever o saci. Colocou a cabeça para fora, observou o corredor, olhou para a direita e depois para a esquerda. Não viu Tiranossauro. Ela decidiu sair em disparada pelo corredor. Nesse instante, o saci abriu a porta do quarto de Toninho para avaliar as estratégias que pensou pôr em prática na madrugada. Presenciou a corrida da bailarina, que sorriu quando o viu, e a captura dela por Tiranossauro. O cão a pegou e já desceu para o quintal. O saci ficou desesperado, mas se acalmou logo para poder resgatá-la. De volta ao quarto de Toninho, pediu ao boneco do Homem-Borracha que o descesse até o quintal. Mas era muito longo para ele. Então, os brinquedos se uniram e se fizeram de ponte para que ele chegasse até uma árvore e descesse por ela. Lá fora, no mundo selvagem de insetos, pés humanos e cães babentos, o saci deu a volta pela casa e já estava na varanda. Próximo a Tiranossauro estava a bailarina toda encharcada de saliva. Entre ossos e pequenos objetos, a bailarina tentava se livrar do DNA do cachorro. O saci decidiu não planejar sua ação, apenas seguiu as batidas do coração, passo a passo. Depois, em velocidade, saltou o cão adormecido e caiu em cima de uma tampa de margarina, metade inteira, metade estraçalhada. A bailarina sorriu largamente quando o viu. De mão dadas, caminharam devagar para não despertar Tiranossauro. Mas, os passos de Amanda, que tentava encontrar sinal para o celular, fizeram o cachorro acordar. Tiranossauro percebeu os namoradinhos e correu atrás. No entanto, quando tentaram ir para o gramado para iniciar a volta pela casa, os brinquedos acabaram por cair em uma teia de aranha, que, de imediato, começou a cobri-los com seus fios. A aranha andava de um lado para o outro, no seu trabalho cotidiano de criar fios que não pudessem ser rompidos. O saci deixou escorrer uma lágrima. A bailarina pensava que escaparia de lá de qualquer jeito, nem que fosse a última coisa que viesse a fazer na vida. Quando tudo parecia perdido, Amanda passou por eles e avistou os brinquedos. Retirou-os da teia, furiosa com Toninho pela brincadeira que suponha que ele havia feito.
– Por que eu faria isso com o meu boneco favorito, sua bocó? Amanda levou o saci e a bailarina para o seu quarto, deixou-os na Casa dos Sustos.
Toninho protestou, chamou os pais e, no fim, concordou que eles poderiam estar apaixonados.
– O saci e a bailarina são namorados, seu tonto! – Disse Amanda, toda satisfeita.
Com o tempo, Amanda e Toninho assinaram um acordo de paz. Na volta às aulas, saíam juntos para a escola. Porém, cada um permaneceu no quarto em que estava. Toninho com um quarto enorme e solitário, e Amanda com um menininho que corria todas as madrugadas para sua cama.
A bailarina e o saci viveram felizes para sempre entre as figuras excêntricas da Casa dos Sustos. E isso é tudo que se precisa saber sobre esta estória.
(Ilustração de capa: Lua Brandão).