A boca da noite por Sílvia Barros
TRAVESSIA é coluna reservada à professora doutora do Colégio Pedro II e poeta de mão cheia, Sílvia Barros. A periodicidade é quinzenal, preferencialmente às terças-feiras, mas isso não é regra, só os 15 dias. O objetivo do espaço é jogar luz sobre as intercessões presentes na relação entre conhecimento acadêmico e saber ancestral. Boa leitura!
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Os animais se reuniram para decidir qual era a maior boca do mundo. Um apontou para o leão e disse que aquela era a maior boca. O macaco respondeu que não, a maior das bocas era a do jacaré. O jacaré abriu sua enorme boca para dizer que a maior boca era a do elefante. O elefante, por sua vez, disse que a boca maior que tinha era a da baleia. A baleia negou o título.
– Qual é a maior boca do mundo, Silvinha? É a boca da noite.
Minha avó, Belinha, me contou muitas vezes essa charada sobre a maior boca do mundo. Acredito que essa seja uma narrativa ancestral de povos brasileiros, dos quais descendemos. Reproduzi ao meu modo a historinha dos animais, porque o que mais me fascinava era a resposta final, que eu já sabia, mas queria ouvir de novo: “a boca da noite”. Expressão mais bonita, enigmática e amedrontadora que ouvi na infância. Na minha cabeça, a noite engolia tudo e mastigava com seus dentes de estrelas. Era uma boca de aparência humana, buraco sem fundo que tudo coloca para dentro e faz sumir.
Só mais tarde entendi que a boca da noite é o início da noite, é o crepúsculo, é quando a noite se abre para engolir o dia e criar uma outra atmosfera, quando caminhamos em um outro ritmo e nos reunimos para contar histórias. É o local-tempo em que se encontram divindades e humanidades, em que visíveis e invisíveis passeiam.
Existe uma noção bastante eurocêntrica do medo da noite e eu, criança, tinha esse medo-fascínio. No entanto, se substituirmos o medo pelo mistério, o mistério-fascínio, a noção do crepúsculo como momento das transmutações, trocas e transições, essa expressão ganha outro sentido. A boca da noite como hora de contar nossa história e incorporar as histórias alheias;a boca que engole, digere e transforma a energia a ser usada ao raiar do dia. A boca da noite é uma escolha da poética brasileira para se referir ao um momento que pode ser de recolhimento e de encantamento.
Quando leio e ouço pessoas associando nosso tempo presente a uma grande escuridão, aos tempos obscuros, entendo que estão falando do terror, como se nosso escuro e profundo não fosse o lugar da fertilidade. A partir dessa conversa remonto minha infância e penso que estamos na boca da noite: há perigos, mistérios, mas há possibilidade de mobilizar nosso fascínio pelo mundo e pelas histórias dos outros para nutrir um dia novo.