A cleptomania do amor em “Sem açúcar” de Flávia Helena
A resenha “A cleptomania do amor em Sem açúcar de Flávia Helena”, de autoria de Divanize Carbonieri foi publicada originalmente na Revista Athena (UNEMAT), v. 15, n. 2, 2018 (https://periodicos.unemat.br/index.php/athena/article/view/3501).
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A CLEPTOMANIA DO AMOR EM SEM AÇÚCAR DE FLÁVIA HELENA
HELENA, Flávia. Sem açúcar. São Paulo: Penalux, 2016.
Flávia Helena é uma escritora paulista, residente em Atibaia, cujo livro de estreia, Sem açúcar (2016), apresenta 27 contos, todos narrados em terceira pessoa. O universo enfocado é o dos afetos, em que mulheres e homens são quase sempre marcados pela solidão dos relacionamentos. São narrativas rápidas e densas, cujas frases curtas são cortadas com a precisão de tiros certeiros. O corriqueiro dos dias se dilata e se transforma com o transbordamento do interno, do subjetivo. Um dos principais temas do livro é o que se poderia chamar de uma cleptomania do amor. O amor é visto como algo que rouba aspectos valiosos da vida das pessoas, como o calor, a doçura, os fluidos do corpo e até as direções da mente.
Isso acontece de forma exemplar no conto que dá nome à coletânea, “Sem açúcar”. Nele, uma mulher passa a comer formigas, sendo esse “o jeito que achou para diminuir o choro que a consumia” (HELENA, 2016, p. 57). A ingestão de formigas torna-se uma verdadeira obsessão para a protagonista, que não consegue mais executar suas atividades normalmente. O problema é que as formigas engolidas devoram, além do choro represado, a sua própria substância, seus líquidos e carnes. A mulher passa a murchar, e seu rosto e corpo vão ficando cada vez mais enrugados. Um médico é procurado, que diagnostica desidratação e falta de doçura, prescrevendo cápsulas de glicose e muito líquido. Mas o tratamento não surte efeito. Então, é buscada uma benzedeira, que recomenda que a moça tome cinco gotas diárias do orvalho recém-recolhido de um bem-me-quer. Ela segue o conselho e para de comer os insetos: “[m]as dor de amor não se cura de repente. Tem que ser aos poucos. Se a gente prestar atenção, a pele do rosto já começou a desenrugar. E ontem ela sorriu” (HELENA, 2016, p. 59).
Nesse conto, apenas no trecho final, ficamos sabendo que a tristeza da protagonista se deve à dor de amor. Assim, é o amor que está roubando tanto sua doçura interna quanto os líquidos de seu corpo – e, consequentemente, da alma -, deixando-a seca. O orvalho do bem-me-quer parece ser um remédio mais eficaz do que as cápsulas de glicose, porque o aspecto raiado da flor sugere o caráter cíclico dos amores na vida de uma pessoa. Cada pétala retirada representa uma rodada, que pode trazer o amor correspondido ou não. Com várias rodadas, já se estaria pronto para enfrentar melhor a perda de um amor. No entanto, a melhora é lenta, como em qualquer processo de luto.
No conto “Sem açúcar”, o ser amado não está presente na vida da protagonista, e pode-se entender que é a sua ausência que traz tanto sofrimento. Mas, em “Era uma vez”, algo diferente acontece. Nessa narrativa, uma mulher permite que um contador de estórias entre em sua casa. Ele lhe conta uma estória enquanto ela se mantém fascinada. O repertório nunca se repete, mas para isso “ele precisava se reabastecer de tempos em tempos. Que era para reavivar a memória, angariar palavras, recuperar o entusiasmo, juntar experiências, reaquecer o coração” (HELENA, 2016, p. 50). A estória que conta nessa noite é a sua última do estoque. Estando esgotado, ele aceita o seu convite para pernoitar. A moça dorme muito bem, mas começa a sentir um frio estranho: “Fui eu quem roubou sua quentura. A estória de ontem foi a última que eu tinha guardada. Tinha que me recompor e só havia você por aqui” (HELENA, 2016, p. 51).
Ela propõe que ele saia para contar suas estórias, mas volte à noite. E assim ele faz por alguns dias. A partir daí a perda de características ou capacidades passa a ser progressiva: “Foi numa sexta-feira que ela começou a se desorganizar. Colocou açúcar no coador, em vez de café. […] Em seguida foi a doçura, que ele tirava direto do útero, enquanto faziam amor. […] As palavras, ele pegou por último. Apanhava com a língua, uma por uma, enquanto se beijavam” (HELENA, 2016, p. 52). O amor rouba elementos preciosos da vida, mas mesmo assim a mulher escolhe permanecer nesse relacionamento. Ainda que perca o calor, a doçura e até as palavras, ela não repele o contador de histórias. Dessa forma, o caráter usurpador do amor independe de se ter presente o ser amado ou não. Há algo na própria natureza do amor que se estabelece como um ladrão de coisas fundamentais.
Mas em Sem açúcar o mesmo amor que tanto rouba não pode ele mesmo ser roubado. No conto “Cleptomania”, uma mulher rouba coisas sem muito valor de outras pessoas. Com os objetos, também são tiradas características importantes de suas vítimas, que se desorganizam a partir dali. Apesar dessa cleptomania, a moça é considerada exemplar na sociedade em que vive, tornando-se alguém acima de qualquer suspeita, uma mulher capaz de se tornar uma excelente esposa para qualquer homem. Sendo assim, ela decide escolher um par para se casar: “O escolhido foi Joaquim, namorado de uma colega de trabalho. Preferiu alguém que já fosse comprometido” (HELENA, 2016, p. 41). Após roubar uma presilha da rival, a protagonista consegue atrair o interesse de Joaquim, que acaba se casando com ela. O roubo, que, a princípio, parece ter dado certo, na verdade, revela-se ineficaz. O casal permanece junto, mas é infeliz. A voz narrativa justifica isso da seguinte forma: “[é] que amor não se rouba” (HELENA, 2016, p. 41).
Então, existe uma certa passividade nos tormentos do amor. Pode-se ser roubado por ele, perder tudo o que se possui, chegando às raias do desatino. Mas não se pode roubá-lo, não é possível, apenas por vontade própria, despertar em alguém o amor que se deseja. Fica estabelecida a supremacia do amor, que governa os corações das pessoas, às vezes de maneira déspota, sem nunca permitir ser governado. Amores correspondidos e não correspondidos têm todos a sua parcela de sofrimento. Pela dor dos personagens, os leitores aprendem lições importantes a respeito da natureza das relações amorosas.
Em Sem açúcar, Flávia Helena retrata situações em que o cotidiano e o insólito se mesclam, criando a sensação de que algo bastante familiar está sendo examinado por uma nova óptica. O insólito funciona como uma lente de aumento sobre cenas que são, de outra forma, bastante comuns. Ele proporciona o estranhamento necessário para que se questione a naturalização de certos comportamentos ou respostas emocionais corriqueiras. Além disso, a constante voz narrativa em terceira pessoa se configura como uma consciência distante e serena que observa e apresenta personagens transtornados em ambientes e eventos desfigurados. A vivência da dor não é dada, portanto, por uma identificação direta, que poderia seguir um imediatismo trágico e irremediável. Ao contrário, ela parece ser reelaborada, revisada de cima, em busca de um difícil aprendizado. O que se desenha nessas histórias é praticamente uma pedagogia do amor e da dor. Não é um ensinamento definitivo, mas a reavaliação de experiências conhecidas e compartilhadas por todos os seres humanos, para que seja possível, se não uma superação, ao menos a continuidade da vida. Dessa forma, a leitura da coletânea é fundamental para todos aqueles que pretendem aprender a lidar melhor com os próprios sentimentos e frustrações.