A máquina da cidade é entorpecente por Sílvia Barros
Sílvia Barros é professora por profissão e escritora por nascimento. Doutora em literatura brasileira e hoje atua na educação básica e na pós-graduação, desenvolvendo pesquisas em torno da autoria negra. Como escritora, publicou contos, poemas e crônicas nas antologias As coisas que as mulheres escrevem (2019), Cadernos Negros (2018 e 2019), Negras Crônicas (2019), Nem uma a menos (2019) e Contos para depois do ódio (2020). Publicou o livro O belo trágico na literatura brasileira contemporânea, fruto de sua tese de doutorado defendida em 2018.
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Um músico
No centro da cidade e no bairro nobre, jovens negros tocam diversos instrumentos musicais nas calçadas, em frente às lojas e às padarias chiques onde pessoas pobres e madames passam e ouvem; passam e prestam atenção; passam e ignoram; passam e jogam cinco reais no estojo do violino; passam e pedem que eles toquem o hino do Flamengo; passam e acham lindo a arte como salvação. Luiz, jovem, negro, músico, foi preso, acusado de um roubo que aconteceu há três anos.
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Aglomeração
As praias estão cheias de pessoas sem máscara, aglomeradas, descumprindo todas as normas da OMS. Os ônibus e metrôs estão lotados de pessoas sem máscara, aglomeradas, descumprindo todas as normas da OMS. As pessoas do segundo grupo estão com medo. As do primeiro talvez estejam com medo de alguma coisa também. Isso acontece muito no Rio de Janeiro.
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As lojas
Muitas portas fechadas com placas de “passo ponto”. Muitas pessoas que dormem em frente a essas portas continuarão lá quando o horário comercial iniciar.
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A máquina da cidade é entorpecente
No privilégio do meu escritório, onde escrevo, descubro que tenho limites para minha dedicação ao trabalho. Me pergunto porque fico tão exausta. Se é o adoecimento psicológico pandêmico, se meu volume de trabalho aumentou. A cidade é uma máquina entorpecente. O abafado do ar poluído, o trânsito, os mil compromissos em bairros diferentes começando cedo, indo até a noite, muito além do expediente. Os sons de ambulância, o medo de passar pelo trecho em que há assaltos a ônibus quase todos os dias, as feiras literárias, as filas dos correios, dos bancos, dos restaurantes a quilo, a areia da praia cheia. Tudo isso parecia normal. A notícia da operação policial que obriga a mudar o trajeto de volta para casa. O cansaço do corpo. Parece tão normal. As notícias abalam cada vez menos, mais um jovem preso, outro que foi morto. Muitas crises agora estão instaladas. Em alguns, pela overdose dessa máquina entorpecente. Em outros, pela abstinência dela.