A máscara da dor – Por Marilia Kubota
Na coluna quizenal “Outras faces”, Marilia Kubota publica resenhas jornalísticas sobre obras de autoras e autores independentes e da grande literatura, destacando escritos de mulheres não-brancas e de autoras e autores da diversidade étnica e sexual. Desta vez, o livro resenhado é Memórias da Plantação (Cobogó, 2019), de Grada Kilomba.
Marilia Kubota é poeta e jornalista, nascida no Paraná. Autora dos livros de poesia Diário da vertigem (Patuá, 2015), micropolis (Lumme, 2014) e Esperando as Bárbaras (Blanche, 2012) e organizadora das antologias Um girassol nos teus cabelos – poemas para Marielle Franco (Quintal, 2018), Blasfêmeas: Mulheres de palavra (Casa Verde, 2016) e Retratos japoneses no Brasil (Annablume, 2010). É Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.
A imagem destacada na coluna é de autoria de Carlos Dala Stella.
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A Máscara da dor
Memórias da Plantação (Cobogó, 2019), de Grada Kilomba, é um ensaio literário sobre memória, racismo, gênero e pós-colonialismo. As memórias revêem, além da história de Grada, narrativas de três outras mulheres negras: a escravizada Anastácia, a alemã Alícia e a americana Kathleen, as duas últimas com nomes fictícios.
Anastácia é um ícone do silenciamento histórico de mulheres negras. A escravizada (termo adotado pela autora, em vez de “escrava”) foi trazida de Angola para um engenho de cana-de-açúcar na Bahia. A imagem que a tornou célebre é a que aparece com uma peça de metal sobre a boca, supostamente usada para evitar que os escravizados comessem cana-de-açúcar e evitar que prejudicassem o senhor de engenho.
Segundo Grada, a máscara de Anastácia ilustra a inversão da ordem autoritária do racismo, ao projetar a agressividade e sexualidade no outro. Os negros são considerados “a ameaça, o perigo, o violento, o excitante, e também o sujo, mas desejável —- permitindo à branquitude olhar para si como moralmente ideal, decente, civilizada e majestosamente generosa, em controle total e livre da inquietude que sua história causa”. (Página 37).
Através deste mecanismo de alienação, a subjetividade negra é negada, seus corpos considerados impuros. A máscara é o símbolo da voz que não pode ser ouvida. E não apenas durante o período colonial. Até na contemporaneidade, a violência da escravização, mantida como trauma na memória de seus descendentes, deve ser silenciada.
“Que língua você fala ?”
Grada relata experiências como estudante e professora em universidades alemã. A intelectual tem que se confrontar com a desqualificação de ideias, consideradas marginais ou subjetivas diante de uma cultura universal e objetiva. Na universidade, tem que confirmar nos exames de doutorado que é capaz de entender e se comunicar em alemão.
Ela afirma que o feminismo branco, se negligenciar a história da escravização, do colonialismo e do racismo, não equiparará as lutas de mulheres brancas e negras, como também explicado por Angela Davis, em “Mulheres, raça e classe” (Boitempo, 2016).
Os capítulos finais do livro são dedicados às histórias de relações da afro-alemã Alícia e da afro-estadunidense Kathleen com mulheres ou homens brancos. Ambas experienciaram o racismo cotidiano, em perguntas inocentes como “De onde você vem?” e em abusos de familiares. A mãe adotiva de Alícia e um ex-namorado de Kathleen performam atos ou expressões racistas.
As histórias de mulheres negras indicam o trauma de memórias do passado colonial. Atos racistas provocam choques e os discriminados, ainda não curados das feridas culturais, não conseguem reagir. A reparação só será feita com “a mudança da estruturas, agendas, espaços, posições, dinâmicas, relações subjetivas, vocabulário, ou seja, através do abandono de privilégios.” (página 46)
Grada Kilomba nasceu em Lisboa e tem raízes em Angola e São Tomé e Príncipe. Doutorou-se pela Universidade de Freie e trabalha com performance, instalação, encenação e vídeo. Seus trabalhos foram apresentados na 32a. Bienal de São Paulo, na 10a. Bienal de Berlim, na 14a. Documenta 14, na Calouste Gulbenkian e na Pinacoteca de São Paulo, entre outros eventos.
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