A memória delas é a nossa. III Encontro Nacional do Mulherio das Letras
“A memória delas é a nossa. III Encontro Nacional do Mulherio das Letras” é um texto de Elizabeth Olegario, que possui graduação em Letras Português e Literaturas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Mestra em Comunicação e Culturas Midiáticas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) . Doutoranda em Estudos Portugueses: Área de Especialidade: História do Livro e Crítica Textual – Universidade Nova de Lisboa (UNL). Integra o Grupo de Investigação: Leitura e formas de escrita, vinculado ao Centro de Humanidades (CHAM – UNL), unidade de investigação inter-universitária vinculada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e à Universidade dos Açores.
***
A memória delas é a nossa
“Sempre fomos o que os homens disseram que nós somos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos”. (Lygia Fagundes Telles, in As Meninas)
Quando Dona Militana faleceu, em 2010, fazia 200 anos que Nísia Floresta tinha nascido. Mas nós podemos imagina-las numa conversa. Juntamos Mãe Luiza, Dona Militana, Nisía Floresta e Zila Mamede conversando no Beco da Lama sobre os desafios da Mulheres no Estado do Rio Grande do Norte. Luiza está nos relatos orais. História das margens e nome que ficou no morro. Quase ouvimos estas mulheres falando das lutas cotidianas. Militana Salustina, menina de sete anos começou a trabalhar na roça, plantando mandioca e feijão. Diz que Atanásio Salustino, seu pai, a proibira de cantar, mas ela reinventou-se. Memorizou romances, cantou modinhas, coco, moirão, toadas e fandangos. É com embaraço e orgulho que ouve a gente dizer que é a maior romanceira do Brasil. Pensar a história das mulheres é pensar em uma “existência colectiva, ainda que mantida em regiões de sombra. Mas a sombra é retrospectivamente interrogada a partir dos lugares que essa existência assumiu” (Lisboa 2018, p.157).
Sou parteira. Chamam-me Luiza. Agora que a prosa começou a ficar boa tenho que pegar o beco. Tu sabe, né Zila? Mulher que decide o seu dia nem sempre cola na Favela. Isso que chamam de feminismo será irmandade, mas a irmandade por vez desaparece quando se pede uma carona até o morro. Calma Luiza, diz Zila. Podemos ao menos fazer um brinde? Aparece Nazaré que traz uma cerveja e um fígado acebolado para petiscar. Eu até fico mais um pouco, responde Luiza. Mas gostava de ouvir um poema. Zila então declama: “Arado cultivadeira / rompe veios, morde o chão/ Ai uns olhos afiados/ rasgando meu coração/ Arado dentes enxadas / lavancando capoeiras / Mil prometimentos, juras/ faladas, reverdadeiras? / Arado ara picoteira /sega relha amanhamento,/me desata desse amor/ternura torturamento”. Se toda história é um exercício de ficção, podemos ouvir: Eta mulher Norte-Riograndense! sempre ligada à escrita. Que coisa bonita da mulesta, diz Luiza. Um cheiro bem grande em todas vocês. Como diz a canção: “Moro em Jaçanã / Se eu perder este trem, / que sai agora às 11h00 / Só amanhã de manhã”.
Quantas vezes tentamos mudar o mundo em uma mesa de bar? Aí, as conversas são fragmentos. Muda-se de assunto com uma certa constância. Depois… retornamos a eles ou não retornamos. A verdade… é que algumas prosas nos alimentam para o resto da vida. Sabe, meninas, diz Nísia. No início do século XIX não se pensava em infância como agora. Tanto é que casei aos 14 anos de idade. Se fosse agora, você tinha direitos. Mas Zila interrompe. O Brasil de hoje parece o mesmo de ontem. Somos o quarto país com o maior número absoluto de meninas casadas aos 15 anos de idade.
Olha quem vem ali, diz Militana. Era Jeanne Araújo. Vinha em direção à mesa. Boa noite meninas, diz Jeanne. Desculpa atrapalhar a prosa.Vim só para dar um cheiro e avisar que o meu novo livro “Cercas de Pedras” será lançado no dia 2 de novembro, no Mulherio das Letras. E digo mais. Vai rolar também um Vídeo documentário sobre Nísia. É mesmo? Não, estava sabendo, responde Nísia.
Pois é meninas. É pautado nestes exercícios de memória e pensando que a literatura é um instrumento “que pode ajudar a entender o valor das lutas coletivas”. (Evaristo, 2019), que o Rio Grande do Norte será palco do III Encontro Nacional do Mulherio das Letras. As atividades decorrerão entre os dias 1, 2, e 3 de novembro na Cidade da Criança. O encontro é coordenado pela poeta e ensaísta Rejane Souza.
Nesta edição confirmaram presença Tânias, Contâncias, Maíras, Valeskas, Valérias e Marias. E como não se pode esquecer o vínculo entre história e memória, lá estarão também Zila, Nísia, Auta, Luiza e Militana. Que maravilha! Dizem em coro.
Mais deixa eu contar rapidamente a vocês. Há trinta e oito anos nasceu o Mulherio, um jornal feminista alternativo. Surgiu em 1981 e foi um modo de mulheres acadêmicas fazerem política e resistirem no cenário da ditadura. Suas páginas testemunham a construção de consciência feminista no Brasil. Que legal, diz Nísia. Tu sabe, né Jeanne? Que fui uma das primeiras mulheres a escrever em Jornal. Uma das primeiras a romper os limites do espaço público, afinal, em oitocentos a palavra ainda era propriedade de homem. Pois sei Nísia…
Vejam só. Não é que passados trinta e seis anos surge o Mulherio das Letras, um novo movimento literário feminista alternativo. Nascido em um país cuja literatura é considerada periférica, a força do Mulherio das Letras reside em um conjunto de devir-minoritários: o país em que nasceu, Brasil; os sujeitos que o protagonizam, mulheres; e o local em que aconteceu o primeiro encontro, a cidade de João Pessoa.
Compreendendo as mulheres como agentes históricos, e a escrita como uma forma de “sacudir o sentido do mundo”, o I Encontro Nacional do Mulherio das Letras foi um chamamento para que as mulheres assumissem a palavra. A escrita é uma forma de estar activa no mundo, uma forma de não se vergar às circunstâncias que pretende nos domesticar. E Jeanne acrescenta: Fui ao primeiro encontro com Rejane Souza e Giovania Machado. Estar com estas mulheres me remeteu a uma outra. Dizia Lygia Fagundes Telles “ Sempre fomos o que os homem disseram que nós somos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos”. Esta é a tónica. E digo mais Zila, a Nivaldete também esteve conosco. Preciso ir ao banheiro, diz Jeanne. Olha quem está ali, Jeovania Pinheiro.
Olá Jeovania. Tava falando para as meninas da coletânea “O LIVRO das Marias”. Olha, acredito que o Mulherio tem provocado algumas (des)orientações no campo literário. A primeira delas é a quebra da clivagem centro versus periferia. Soubeste que este ano com o selo Mulherio da Letras fora lançada a Coletânea “A mulher e o livro”, pela Editora Carpe Librum no maior festival literária do Brasil, a Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP). Pois, chegamos na FLIP. A coletânea foi organizada por Esther Alcântara e reuniu 28 autoras. Outra iniciativa que revela o poder de organização do movimento é a Livraria Mulherio das Letras, que também foi tema de uma mesa na programação da Casa Philos, na FLIP. A Livraria Mulherio a princípio teve como objetivo trabalhar com vendas online. Porém, em 2017, foi criado um espaço físico na cidade de Poços de Caldas. A Livraria Mulherio busca aproximar, dar visibilidades e facilitar a circulação e distribuição das obras das autoras e editoras que circulam entre SP, BH e RJ. Já nos dias 5 e 6 de outubro A livraria Mulherio foi selecionada para participar do I Festival Literário Mário de Andrade, em São Paulo.
E mais, o movimento tem se internacionalizado. Na Europa, já decorreram várias edições do Mulherio das Letras Europa. A primeira em Paris, no dia 25 de novembro de 2017 no Institut Culturel Franco-Brésilien alter’brasilis, e a segunda edição intitulou-se “Outubro Literário: Mulherio Europa em Verso e Prosa. As actividades tiveram lugar na Università degli Studi di Perugia e contou com o apoio do Dipartimento di Lettere – Lingue, Letterature e Civiltà antiche e moderne CILBRA – Centro Studi Comparati Italo-Luso-Brasiliano. Atualmente, também se cogita a possibilidade de um novo encontro, em Londres.
Em 2019, com atividades descentralizadas, na Universidade Nova Lisboa e no Palácio de Baldaya decorreu a I edição do Mulherio das Letras Portugal, entre os dias 7 e 10 de Março e, em novembro de 2019, entre os dias 8 e 10 acontecerá durante a Conferência da South Atlantic Modern Language Association em Atlanta a primeira edição do Mulherio das Letras – Estados Unidos.
Sabe Jeanne, diz Jeovania. Acredito que a força do colectivo reside justamente nesta capacidade de mobilizar as margens, e é a organização das margens que tem feito com que escritoras e poetas que nele participam saiam de zona exclusão e silenciamento, para uma zona de potência. Várias vozes anônimas começam a emergir. Embora “emergentes”, estes exercícios políticos de escritas tem impulsionado outras mulheres a exercitarem a “escrevivência. Novas mulheres têm tomado a palavra e registrado as suas memórias, suas narrativas.
Vamos mudar de assunto, que estamos no Beco, diz Jeanne. Mas como? Hoje é dia de ver Celina, Civone, Adélia, Ana Mendes, Maria Luiza Chacon, Mariana Rabelo, Folha e Priscila Rosa. Mulheres que lembram Marize Casto, Diva Cunha, Iracema Macedo e Carmem Vasconcelos e que nos lembra Zila, Militana, Auta e Nísia. De fato, Jeovania, a nossa existência é colectiva, estejamos em Nazaré ou no Mundo. Sejamos “Relatos lendários, ou destroços que boiam”, diz Jeanne.
Vamos lá na mesa onde estão as meninas que quero declamar um fragmento de um poema de Conceição Evaristo. “A noite não adormecerá / jamais nos olhos das fêmeas/ pois do nosso sangue-mulher/ de nosso líquido lembradiço/ em cada gota que jorra / um fio invisível e tônico/ pacientemente cose a rede/ de nossa milenar resistência”.
É isso, Jeovania. O III Encontro Nacional do Mulherio das Letras é um convite para nos conhecermos umas às outras e para (re)lembrarmos as vozes que vieram antes de nós. O mulherio é um convite para conhecermos esta menina que nasceu há 209 anos, no Estado do Rio Grande do Norte. Obrigada Nísia, Obrigada a todas.