A nudez do afeto: amor é um ato de linguagem – Por Michel Yakini-Iman
A Coluna Michel Yakini-Iman apresenta crônicas, contos e poemas deste autor paulistano, atuante no movimento literário das periferias de SP.
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A nudez do afeto: amor é um ato de linguagem
“…estas palavras são, elas sim, para
pessoas que se autorizam
constantemente aprendicismos. modos,
maneiras, viveres. até sangues.
aprendizar não é repessoar-se?…”
Ondjaki, há prensizagens com o xão
Tenho me interessado em estudar a filosofia do amor, mas não aquele que começa pelo toque, pelos sentidos, pelo tesão do corpo. Certa vez, uma amiga me disse: “Michel, amor é um ato de linguagem”, na época não entendi bem a mensagem, mas hoje penso que faz todo sentido.
Essa profundidade me permite conhecer a nudez do afeto, o esconderijo da intimidade, já que o amor muitas vezes é acobertado por outros sentimentos e por isso posso não enxergar suas possibilidades. Mas como cultuar essa prática, se a nudez pública é considerada um desvio de conduta? Se aprendi que nudez só é possível quando estou só ou quando me relaciono sexualmente?
Em A Alma Imoral, Nilton Bonder explica que “as roupas que vestem de moral as intenções humanas nos tornam prisioneiros de uma realidade que nos poda, nos restringe e ameaça nossa sobrevivência. Poder enxergar-se nu, no entanto, é uma traição ao animal consciente difícil de se bancar. Muitos dos que foram queimados na fogueira em praças públicas quiseram expor essa nudez”.
Quando pratico a nudez do afeto, sem necessariamente tocar ou ser tocado fisicamente, me sinto despido no cultivo da linguagem. Isso acontece quando compartilho pensamentos, ideias e histórias íntimas, é quando sinto a intenção de emaranhar a alma antes de emaranhar o corpo.
No livro Consciência Quântica, o indiano Amit Goswani afirma que quando a intimidade se dá fundamentalmente pela química do corpo, uma hora ela se esgota, por isso tendemos a firmar contratos, num mero relacionamento de negócios. Pra ele “a oportunidade presente num relacionamento de comprometimento é que você pode explorar níveis mais profundos do amor sem representar papéis, sem expectativas sociais, até sem a expectativa da sexualidade”.
As salivas e quenturas do sexo são maravilhosas, disso não tenho dúvida, mas venho de costumes masculinos adoecidos e estou reelaborando essa perspectiva. É como bell hooks explica, no seu livro Tudo sobre o amor: “A vasta maioria dos homens em nossa sociedade está convencida de que seus desejos eróticos indicam quem eles deveriam e poderiam amar. Guiados pelo pênis, seduzidos pelo desejo erótico, eles ferquentemente acabam em relacionamentos (…) que não compartilham interesses ou valores em comum”.
Esses costumes podem ser diferentes pra cada pessoa. A masturbação, por exemplo, aparece no discurso de muitas mulheres simbolizando a liberdade do corpo, o direito ao gozo e ao amor próprio, mas aprendi a masturbação centrada no desejo externo, na performance e na confirmação da macheza, não pelo auto amor, e isso, em determinado momento da vida, me levou a degradação e drenou muitas energias criativas.
Agora estou nu. Não me sentia à vontade pra falar sobre alguns tabus, ainda mais num texto que pode ser lido por pessoas desconhecidas, mas ao despir esse tema me permito olhar pra dentro e praticar o amor que estou dedicado a oferecer e receber nas relações.
O professor Renato Noguera afirma que o amor é um caminho de autoconhecimento. Ele chega a essa conclusão a partir da obra O Espirito da Intimidade de Sobonfu Somé. Ao falar das vivências do povo Dagara, do oeste da África, a autora define que o amor romântico, concentrado na atração sexual, “não deixa espaço para verdadeira identidade das pessoas aparecer; estimula o anonimato e força as pessoas a se mascararem”. Sobonfu também explica que isso diminui a capacidade de amizade na relação íntima, como se escolhêssemos subir uma montanha começando pelo topo e não pela base.
Então, se amor é um ato de linguagem, como ensinou uma amiga, creio que isso envolve despir a si próprio, pra se autoconhecer, mergulhado nas questões íntimas que estão espelhadas nas relações afetivas e isso é um rito de passagem para cultivar minha nudez no umbigo do mundo.
Talvez esteja aí o início da trilha rumo ao topo da montanha, num percurso sagrado de colheitas e desafios que alimentam os afetos e me fazem provar as infinitas possibilidades e significados da filosofia do amor. Há muitos tabus para dizer e muitas formas de nudez para experimentar. Oxalá, eu encontre a coragem necessária para seguir nesta jornada.
(Ilustração de Amanda Alves Prado).