A poesia de Kika Sena e o discurso de Erika Hilton: atravessamentos político-literários na narrativa negra transfeminina – Por Esteban Rodrigues
a língua que corta a cara do agressor
clama por justiça
não aparece ninguém
nem uma alma para salvar o seu povo
o plano deles é
o seguinte:
“vamos matar todo mundo
que não seja assim:”
aí mostram um padrão
homem branco e heterossexual
daí tudo que resta corre perigo
todos os tipos de mulher
todos os tipos de bichas
todos os tipos de pretos
todos os tipos de pobres
numa hierarquia decrescente
quanto mais pobre preta e perto de ser mulher for
mais ameaçada de extinção é
(Kika Sena em Salobra, 2017)
A narrativa negra transfeminina parte de um lugar muito específico: a necessidade de romper ausências na arte, na literatura, na política e no cistema. A construção social de um corpo pautado em estigmas e caricaturização atua de maneira a distanciar essa existência de um parâmetro de civilidade e socialização mínima enquanto sujeito. Muito do que atravessa a literatura de Kika Sena e a política de Erika Hilton se propõe a debater esse não lugar e a necessidade de se repensar uma estrutura civil que comporte uma pluralidade com consciência histórica do comportamento atrelado a tais vivências, colocando-as num lugar de marginalização e desumanização.
Pensar em espaços literários e políticos é, automaticamente, pensar numa hegemonia que moldou a forma como as ocupações destes deveriam ser desenhadas por modelos brancos, heterossexuais e cisgêneros. O que é narrado em Salobra é pautado diante das recorrentes ausências que promovem uma extinção generalizada de sujeitos representativos na construção do imaginário social e cultural de um país. É sempre mostrado um padrão. E isso também atravessa a narrativa de Erika Hilton, vereadora mais votada do país nas eleições de 2020 na cidade de São Paulo, que afirma:
“(…) Pude entender a partir do meu ativismo e da dificuldade de conseguir avançar enquanto sujeita, jogada para rua, vivenciando a prostitução, vivenciando um corpo abjeto nas cidades por onde passei. Eu comecei a entender que se não houvesse políticas públicas para o meu corpo e se não houvessem pessoas comprometidas com as pautas dos mais pobres, com as pautas dessas camadas mais baixas da pirâmide social, a gente nunca ia conseguir avançar.”
As prerrogativas que inferem um sistema-norma excludente promovem uma categorização de existências e anulam vozes. Esse é o projeto: Anulação de vozes. Quando Kika enfatiza em seu verso: o plano deles é o seguinte, coloca em evidência como as ações não são súbitas. São pensadas, articuladas e propostas dentro do espectro do apagamento e invisibilização. E continua: vamos matar tudo que não seja assim: e aí mostra um padrão. Erika reflete sobre esse pensamento dentro do cenário político social de maneira a confirmar os projetos de suburbanização e desvalorização do corpo negro pobre transvestigênere. As ações propostas e Projetos de Lei promulgados em seu mandato permitem perceber para onde os seus olhos estão direcionados e é a partir disso que tem se construído um movimento de reparação substancial e redução dos impactos organizados do cistema de matar tudo que não encaixa no padrão pautado por Kika.
As mulheres negras transvestigêneres pontuam sua existência em cenários julgados não seus e discutem sobre a inferência do seu olhar para o sistema civilizatório de maneira a repensar projetos e articulações políticas e artísticas que, quando ouvidas, colocam em evidência a concretização do plano de desigualdades sociais que, em luta, gritos e pautas, serão equiparadas. Kika entoa: a língua que corta a cara do agressor, clama por justiça. Erika afirma: somos a materialização do pensamento de Davis, quando uma mulher negra se movimenta, a sociedade se movimenta com ela.
As práticas políticas e poéticas de Kika Sena e Erika Hilton desenham novos caminhos e abrem novas narrativas. Os pensamentos e posicionamentos de mulheres negras transvestigêneres expõe uma leitura de mundo comum, mesmo em espaços geograficamente distintos, se pensarmos na realidade do Acre e de São Paulo, onde vivem respectivamente.
O uso da voz, dentro de um encadeamento de silenciamentos, anula o que sugere a cisheteronorma sob tais sujeitas e o espaço que deveriam ocupar. É preciso repensar o verso de Kika onde ela desmonta: não aparece ninguém, nem uma alma para salvar o seu povo. É preciso compreender que, por não aparecer, elas se colocaram enquanto alguém em espaços políticos, literários, culturais, sociais e ideológicos que – diante da leitura hegemônica de civilização – não lhe comportavam, entenderam que a ressignificação do corpo social se dá pela ocupação dos espaços de tomadas de decisão e mostraram para quem quisesse ou não quisesse ver: Elas estão aqui. Ouçam Erika quando ela diz que não se trata de uma escolha, se trata de uma urgência; esse projeto é de muitas vozes. Essas são as mulheres que estão desenhando o futuro.
Sejam bem vindes ao depois.
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Ogiva. Substantivo feminino. “Parte afilada de um corpo cilíndrico, geralmente destinada a ser lançada: um projétil, um foguete”.
Gritos escondidos agora mostram dentes.
Assinada por Esteban Rodrigues, Ogiva Transpoética é coluna autêntica. Com desvios, inclusive. É um espaço de percepção, reflexão e interação, onde se alimenta a vida com vida. Atravessado por textos ensaísticos e poemas motivados, não apenas em primeira pessoa, aqui vai repousar a realidade bruta do que alcança a transgeneridade de forma sistemática, social, emocional, violenta, afetiva e política. De quinze em quinze, para dar tempo de processar/digerir/degustar a palavra lançada, haverá reflexos de pesquisa e de poética transcrita e exposta a céu aberto. E, ocasionalmente, o tempo feche após isso. As letras aqui dispostas passearão por espaços julgados não nossos: filosofia, literatura, política, teatro e rua. Tudo para dizer o que há muito é dito, crendo dessa vez no espaço da escuta. Essa coluna, que alcança tantos corpes no mundo, existe para mostrar que aquilo que grita também pode ser chamado de cura.
Esteban Rodrigues, 25. Homem trans, negro, do subúrbio de Salvador. Autor das obras Sal a gosto (2018) e Com mãos atadas e como quem pisa em ovos (2021). Integrante das coletâneas Poemas de Amor e Guerra (2021), Corpos Transitórios (2021) e Transmasculinidades Negras (2021). Graduando em Letras Vernáculas com Língua Estrangeira Moderna (UFBA). Pesquisador de gênero e raça, escritor, professor, produtor cultural, roteirista, multiartista. Diretor Cultural do Mister Brasil Trans, 1° concurso do mundo e no universo da moda focado em transmasculinidades e suas representações. Integrante dos coletivos TransPoetas e CATS.