À procura de um mapa coerente – Por Vinícius da Silva
No laboratório do tempo, coluna assinada por Vinícius da Silva, as coisas não são o que realmente são (ou que pensamos ser); os sonhos deixam de ser sonhos e passam a ser partes da vida. Nesta coluna, quinzenalmente, Vinícius escreverá a partir da interface entre artes visuais, filosofia e literatura, buscando realizar isto que o escritor chama de “experimentos” (ora textos ensaísticos, ora poemas longos) sobre tempo, esquecimento, futuro, e outros experimentos possíveis para o laboratório do tempo. Nesses encontros, Vinícius mais suscitará questões do que tentará respondê-las, pois é dessa forma que o pensamento atinge o seu nível ótimo de curiosidade para conhecer e acessar as coisas. No entanto, o laboratório do tempo nos desafia a esquecer de tudo, menos de quem somos ou de nossos simulacros; você aceita o desafio?
Vinícius da Silva. Graduando em Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas na Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde 2020, da Silva apresenta o Podcast Outro Amanhã, ministra cursos livres sobre o pensamento de bell hooks, Teoria Queer, entre outros temas de pesquisa, e é revisor e atua no setor de Pesquisa Qualitativa da ONG TODXS. Possui experiência e interesse de pesquisa nas seguintes áreas: Filosofia Política, Teoria Queer, Arte Contemporânea, Poéticas Visuais, Teoria Feminista Negra e Artes Plásticas. Site: https://www.
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À procura de um mapa coerente
Tenho repetido a mim mesmo as mesmas palavras há nove anos
na tentativa de construir outros fins que não a morte. De repente,
sinto que estou indo de encontro à mais obscura parte
de mim. No fundo,
eu sinto muita falta do que juntos
infelizmente não fomos, pois
é na ausência que os corpos se amam.
Desde que morei na casa de Ana,
sinto que sua casa ainda não saiu de mim.
Tenho pensado sobre lar, pertencer,
morar.
Na casa de Júlia, porém
aprendi o significado do abandono
a dançar coreografias do adeus.
Tenho querido aterrar-me
em qualquer lugar.
Pensar na casa de Ana me faz lembrar da casa de Igiaba,
para quem nossa casa é onde estamos.
E minha casa, talvez,
seja a fronteira de muitas casas.
Todas eu, no entanto nenhuma minha.
O mapa de Igiaba remonta memórias
de uma diáspora afro-italiana.
O mapa de Igiaba tenta reconstruir
fragmentos do que um dia foi inteiro.
O fragmento é a linguagem do ser traumatizado
no entanto, buscamos uma integridade irrecuperável
em nós mesmos, partidos.
Pensar na casa de Igiaba é um convite para lançar-me
ao vazio, então me entrego
e corro o risco de ser sem lar.
Não que eu tenha um lar que me seja,
não que eu possa pertencer.
Porém,
pensar em Igiaba me faz entender
a fronteira também como um lugar.
O não-lugar como uma forma de estar no mundo.
Um mapa como topografia afetiva.
Um mapa em pedaços porque a memória é seletiva,
porque a memória é como um espelho despedaçado.
Mas não podemos, nem devemos colá-lo,
pois a memória é um rabisco.
Por isso, Igiaba não nos fornece um mapa coerente,
mas um rabisco que de alguma forma escreve algo
em um quadro negro que fora roubado da parede
na qual um dia se localizou.
Do latim scribere,
a palavra escrever significa riscar (ritzen).
As paredes da casa de Ana são riscadas,
portanto são escritas.
A memória é um rabisco que escreve algo
em nossa pele
somos marcados por uma espécie de divisão topográfica.
Há riscos em nossa pele que tentam nos dizer algo,
é preciso transitar entre as línguas para compreendê-los.
Em uma conversa recente com uma amiga,
percebo que seu companheiro
não pronuncia da forma correta a palavra “jacaré”.
“Jacarão”, diz Rowen
quase que numa tentativa de inventar palavras.
Ouvindo este áudio,
percebo que todos nós ocupamos uma fronteira,
precisamos de uma língua que não a nossa
para falar reconhecimento.
O reconhecimento,
no entanto,
é uma língua que nem todos podem falar.
Percebo também que não há pronúncias corretas.
Há aquilo que se estabeleceu como correto
a partir de uma regra compartilhada,
caso contrário inventariamos todos nós
novas palavras a cada novo dia.
Toda palavra que pode ser escrita
é uma palavra que existe?
Talvez para nós,
fronteiriços,
importe mais ocupar a fronteira como um lugar
do que dominar uma ficção colonial
sobre a qual jaz a promessa dos Estados-nação.
A língua brasileira
admite que a palavra casa
(substantivo feminino
a qual possui no mínimo 18 definições)
é escrita com as letras C-A-S-A.
Mesmo falando caZa,
escrevemos caSa.
Como se a casa
fosse uma caça.
Talvez se tanto repetirmos essa palavra
não apenas aprenderemos que nem tudo que se ouve é o que se escreve
como também, pela insistência,
a palavra morar faça algum sentido.
Ansiando outros fins que não a morte,
talvez aprendamos a linguagem da rua
e a linguagem da casa
e possamos enfim respirar como anfíbios
à procura de um mapa coerente
que possamos chamar de lar.