A terra e os olhos de sentir – Por Michel Yakini
Apresentação: A Coluna Michel Yakini apresenta crônicas, contos e poemas deste autor paulistano, atuante no movimento literário das periferias de SP.
Ultimamente, a discussão sobre terraplana e terra redonda tem servido como parâmetro pra medir o grau de fascismo ou antifascismo de uma pessoa, mas esse embate reflete também a forma como costumamos viver, independente de qual lado está a cabeça da serpente ou a altura que a águia vigia a montanha.
Nesta prosa não me interessa classificar os terraplanistas como conservadores e tampouco defender um mundo redondo hasta la revolución. O giro aqui é refletir a escolha, pois do que adianta a ciência, a escola, a intelectualidade, eu e os amigos afirmarem que a terra é redonda, se teimamos em viver num modo plano, bidimensional, quiçá quadrado?
Uma amiga me contou sobre a importância do giro anti-horário na dança. Ela explicou que assim como o sentido horário rege a dimensão material e cronológica, o sentido anti-horário firma e harmoniza com a energia abstrata e metafórica, emanada pela música. Neste caso o passo anti-horário concebe e pratica outro sentido.
Dançar no sentido anti-horário faz a terra ser redonda, esférica. Dançar em vários sentidos faz a conexão com o multidimensional, com nossas muitas versões, a sorridente, a que festeja, a que se faz presente no movimento, a que faz da individuação uma espiral. Capaz que se perguntar qual a forma da terra, depois de um bailado, a resposta seja: Redonda, só pode!
Pra ser redondo e esférico é preciso que os saberes e fazeres girem na mesma intenção, é preciso praticar uma cosmovisão alinhada a esta premissa. Nas leituras aprendi que a cosmovisão africana, recorrente em várias tradições, é baseada na circularidade e no aprendizado multifacetado.
Essas bases são vivências pulsantes numa roda de capoeira, de samba ou de dança, só pra citar alguns exemplos, mas a maioria das estruturas que cultivamos tendem a manter a terra plana. No caso da educação formal, basta irmos à escola, depois à faculdade, sentar em fileira, ser chamado de aluno e aprender de forma linear, pra receber a recompensa ou a punição e ainda parear tudo com as crenças binárias de vida/morte, início/fim, direita/esquerda, melhor/pior, bonito/feio e por aí vai….
Quando somos orientados exclusivamente pela materialidade, e sua finitude bidimensional e polarizada, nossa vida tende a ser estruturada assim e nossas ideias também, vamos aprendendo e praticando de uma forma tão naturalizada que por vezes nem percebemos. Viver na esfera exige algo além.
Outro amigo disse que a terra é redonda porque o sol e lua também são. Concordo, porém se considerar somente os olhos de ver, os sol e a lua são redondos, mas planificados como uma moeda de ouro e de prata no céu. O giro do sol, da lua, da terra, e da gente só da pra enxergar com os olhos de sentir.
Numa palestra me perguntaram: Mas a afinal Yakini, a terra é redonda, certo? Se eu tivesse focado em agradar a torcida e evitar o movimento, diria na lata: sim, com certeza, um absurdo dizer o contrário! E minha opinião seria tão reta quanto a abominável terra plana. Então respondi: Depende em qual mundo você vive. Se o seu mundo dá conta somente dos olhos de ver, é possível vociferar a terra redonda e continuar no seu quadrado, mas se você vive também com os olhos de sentir, o que você diz tende a girar com aquilo que você pratica.
Pode ser que a pessoa pensou que me esquivei da resposta, que sou um terraplanista disfarçado, ou ter me chamado baixinho de “fascistinha de merda”, mas isso é um problema de quem pensou isso (se é que pensou), minha intenção era apenas chamar pra dançar, pegar nas mãos da pergunta, bailar no anti-horário, pra experimentar morder a própria cauda, sem temer a montanha ou medo de alçar voo.
Michel Yakini é escritor, produtor cultural e arte-educador. Autor de Acorde um Verso, Crônicas de um Peladeiro e do romance Amanhã quero ser Vento (indicado pelo Suplemento Pernambuco como um dos melhores lançamentos literários de 2018); É um dos idealizadores do Sarau Elo da Corrente. Participou de atividades literárias em Alemanha, Argentina, Chile, Cuba, Espanha, França, México, Egito e Paraguai. Foi traduzido para o espanhol, inglês e árabe.