A viagem
Eu nunca chamaria nosso caso de amor, até porque ela nunca deixaria, mas também não sei onde mais encaixar tudo isso e que me perdoe pelo medo que causo toda vez que sugiro algo parecido. É que só o amor me faria cruzar a cidade embaixo de chuva sem ao menos saber se ela está em casa. Nessas horas, eu me arrependo amargamente por tê-la deixado apagar o seu número da minha agenda na última briga, queria ter certeza que eu cumpriria com a promessa de não ligar. Ela sabe que não sou bom com promessas e eu sei que ela não é boa com sentimentos.
Faz seis meses que não a vejo, e, amigo, são quase 180 dias sem percorrer aquela pele, acho que ainda conheço de cor todos os seus desejos. São duas linhas de metrô, dez estações e mais meia hora de ônibus para chegar no apartamento “quarto e sala” da zona oeste. Quem mora em São Paulo sabe que é quase impossível chegar em qualquer lugar quando chove e não demora muito para o ônibus parar num ponto de alagamento. Estamos quase na Pompeia e me lembro daquela vez que a levei a contragosto no jogo do Palmeiras, de fazer amor numa rua deserta perto da casa dela, sua respiração ofegante e desafiadora misturada com o barulho da avenida logo abaixo. Adorava me testar, atiçar e provocar em mim todos os tipos de urgências necessárias ao desejo fulminante.
Como irá reagir ao me ver aparecendo assim do nada? Como irei abordá-la no interfone? Será que estará? Se não estiver, espero. Se não quiser me receber, invado o prédio. É que fiz tanta coisa errada que me pergunto se gastei todas as chances de fazer desse caso nossa casa. Meu ponto é o próximo, minhas pernas bambeiam e eu ofego num frenesi juvenil. Que idiota me sinto.
Aumento o volume do player para me distrair dos pensamentos, me preparo para pegar um pouco de chuva e salto. Chove mais do que eu imaginei de dentro do ônibus abafado, não demoro para estar encharcado e essa ansiedade misturada com o medo me provocam pânico. Tento me controlar, relaxar, mas não demora muito e a voz do Mike Patton invade meus ouvidos e como numa miragem a vejo dançando pra mim. Traído pela minha sanidade, desligo o player e aperto o passo.
Chego na esquina da casa dela e, amigo, eu lembraria daquela sacada até em outra encarnação, do dia em que ela nos trancou para o lado de fora e só liberou a saída depois que cumpri todos os seus desejos, até meu último piscar de olhos me recordarei do seu olhar de satisfação. Dava-me toda sua liberdade e eu a aprisionando em minhas ilusões. Dobro a esquina e dessa vez não é uma miragem que me salta aos olhos, mal tenho tempo de pensar em como reagir. Põe as mãos na fechadura por um segundo e sorri de canto de boca. Seus olhos brilham, está mais linda do que em meus sonhos, e antes mesmo que eu pudesse me explicar, se lança em meus braços como se eu nunca tivesse partido.
– Achei que nunca mais ia voltar!
Desgruda do meu corpo e seu vestido fino de verão fica encharcado do meu abraço.
– Te esperei por tanto tempo.
E eu mudo, desarmado por sua reação inesperada. Ela aninhada em meu peito, eu perdido em seu abraço, nem nos importamos com a chuva que insiste em cair. Eu teimo em dizer que tudo isso talvez seja mesmo amor.