A visão do Fícus Lyrata – Por Sílvia Barros
TRAVESSIA é coluna reservada a poeta de mão cheia, Sílvia Barros. A periodicidade é quinzenal, preferencialmente às terças-feiras, mas isso não é regra, só os 15 dias. O objetivo do espaço é jogar luz sobre as intercessões presentes na relação entre conhecimento acadêmico e saber ancestral. Boa leitura!
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Dentro dos apartamentos pandêmicos eu observo as pessoas criarem suas “selvas urbanas”. De acordo com as informações facilmente encontradas via sites de busca, descubro que minha origem é a África Ocidental, do oeste de Camarões à Serra Leoa, onde cresce uma floresta tropical de várzea. Eu poderia crescer até quinze metros de altura, mas estou plantado em um vaso. Um vaso que fica solitário no canto de uma sala de estar ou em uma varanda em meio a outras dezenas de plantas folhosas e folhudas.
Faço as vezes de figurante nos gabinetes dos CEO e salas de espera de consultórios nos filmes e séries de televisão. Como me tornei objeto de desejo em tempos pandêmicos – quando as pessoas passaram a criar grandes jardins em seus apartamentos com fins terapêuticos e instagramáveis – basta que apareça no episódio da série, para que muitos dedos apontem simultaneamente: “ali, óh, um fícus lyrata, lindo! Igual ao meu” com variações de “quero um” ou “pena que custa tão caro”. Versões pequenas foram criadas para que eu coubesse em apartamentos apertados na Califórnia e em Copacabana. Grupos de amantes de plantas discutem os melhores cuidados e como reverter o amarelecimento das lindas folhas em forma de violino. Estou até em capa de livro.
A moda é uma coisa interessante. Está na moda ter plantas. Está na moda ter uma planta específica. Ficus Lyrata: objeto de desejo. Para além da moda, vejo as pessoas desejando cuidar e serem cuidadas. Se mobilizando na pulsão da vida que se mascara no fetiche de ter um objeto de desejo selecionado pelo algoritmo e pelo mercado para ser o novo “tem-que-ter”. Antes de mim, já estavam ali a Costela de Adão, a Espada de São Jorge e a incansável Jiboia. Moradoras das casas das avós, repositórios de poeira, esquecidas em calçadas e vivas, testemunhas do mundo doméstico quando eu ainda habitava a selva.
Olho para minhas companheiras e penso em como são generosas por velarem pelos humanos, dando folha atrás de folha, engrossando raízes e lanças que não se cansam de crescer. Parada no meu canto, vejo os olhos alegres e o sorriso de quem só precisa de um sinal de que existe algo de bom, um caminho, um futuro, um comunicado de vida. O que eu tenho a oferecer vem em forma de uma nova folha que começa a se desenrolar bem no topo, lentamente. Primeiro em um tom claro de verde, depois escurecendo, abrindo-se sobre as mais antigas, se inclinando em direção à parca luz que vem da janela, quando, por fim, será fotografada pela pessoa que alegremente mostrará nosso feito ao mundo.