Alguém vai lembrar de mim – Por Sílvia Barros
TRAVESSIA é coluna reservada a poeta de mão cheia, Sílvia Barros. A periodicidade é quinzenal, preferencialmente às terças-feiras, mas isso não é regra, só os 15 dias. O objetivo do espaço é jogar luz sobre as intercessões presentes na relação entre conhecimento acadêmico e saber ancestral. Boa leitura!
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Quantas horas da semana você dedica ao trabalho? Quantos cursos faz? Qual é a medida do seu esforço? Quem define os limites do seu corre? Somos uma geração que já é composta por algumas pessoas negras que adentraram a academia, que ocupam postos de trabalho um pouco mais prestigiados, mas que, ainda assim, estão no corre. O corre acadêmico, o corre intelectual, o corre científico é real, não é uma escolha. Existe uma política de esquecimento e de assassinato da memória que nos faz precisar criar algo agora, já! Algo novo, mas que na verdade é a retomada de uma episteme, de uma memória e de uma emoção.
O poema “Para cada um de vocês”, de Audre Lorde, traduzido por Tatiana Nascimento na edição brasileira de Entre nós mesmas: poemas reunidos, começa com a seguinte estrofe:
Sejam quem são e serão
aprendam a celebrar
aquele Anjo Negro ruidoso que lhes guia
pelos altos e baixos dos dias
protegendo o lugar donde seu poder emerge
correndo feito sangue quente
da mesma fonte
que sua dor.
Num mundo que nos ataca diariamente e nos impõe o medo, é um luxo abrir mão do corre para somente caminhar por alguns dias. Um luxo difícil e necessário, um momento em baixa para quem está acostumada a operar sempre em alta apesar de tudo e de todos. Luxo e luto estão ali tão próximos para mostrar que para sermos inteiras precisamos aprender a lidar com essa fonte de poder e dor que, como diz a poeta, é a mesma. Precisamos aprender também a gritar que merecemos muito. A plenos pulmões negar a meritocracia hipócrita, capitalista e patriarcal e assumir nossa importância no mundo, avaliar com régua própria nossa excelência.
Fazer do nosso corpo, da nossa palavra, da nossa presença, uma intervenção artística, epistêmica e afetiva é um compromisso ético com nós mesmas. Escrevo este texto depois de alguns dias afastada da escrita, mas intensamente conectada comigo. Escrevo este texto enquanto planejo aulas. Escrevo este texto enquanto o mundo me manda as piores notícias. Escrevo este texto com a intuição trágica de que perderemos muitos/as, mas sabendo esperançosa que muitas/os permanecerão. Escrevo este texto pensando: “alguém vai lembrar de mim”.