Ancestralidade e poesia: a voz de Luana Soares – Por Joe Sales
A coluna “Divagações de Joe” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna) foi criada por Joe Sales [Rondonópolis/Mato Grosso, 1991]. Poeta, professor de Língua Portuguesa e mestre em Estudos de Linguagem. Publicou cinco livros de poemas pela Editora Penalux: Porta Estreita (2014), Ao passo das horas e outro descabimentos (2015), Criticepopular (2015), Largo do amanhecer (2017) e Pelas luas: a mesma encruza (2019). Possui participações em várias antologias nacionais. Atualmente, desenvolve o projeto “leituras clandestinas” em que vozes convidadas dão vida aos contos do livro Clandestinamente.
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A poesia como exemplo: a voz de Luana Soares
O professor Gustavo Bernardo afirma, em Conversas com um professor de literatura (2013), que o exemplo é o melhor método. Nesse sentido, a poeta Luana Soares endossa tais palavras ao relatar que
Seus pais sempre compravam gibis e livros. Fui me tornando leitora assim. Com meus pais, meus professores, turma da Mônica, Revista Recreio e Nosso Amiguinho. Tia Aroura, professora de matemática, na época do fundamental, lia um trecho do livro “O menino do dedo verde” todo início de aula. Eu quis morrer quando minha coleguinha Ana Paula comprou o livro e contou para mim o final. Acabou o suspense. Mistura de raiva e alívio. Foi assim que fui me entretendendo nas linhas da escrita. Depois, peguei birra da literatura lá no início do ensino médio. Não me conformava com escansão do verso, contar estrofe, circular rima. Coisa ridícula. Depois, fiz as pazes com ela quando comecei a ter aulas com Juliana Curvo e Paulo Sesar Pimentel, grandes professores de literatura. Sem dúvida a escola me ajudou nesse processo. Mas, entendo que essa não é a realidade de muitas famílias e escolas, principalmente de estudantes oriundos da escola pública.
A escritora destaca a importância da literatura na escola como trajeto e estimulo àqueles que buscam vínculo com as palavras. Desta forma, o que motiva a sua escritura é o ato de criar aconchego no outro. Sua palavra tem o empenho da cura, da memória, do tempo e da própria ancestralidade.
Sua maior referência é sua mãe, com quem conheceu a arte dos contos e o apreço pela literatura. Também se apraz na leitura de poetas como Luciene de Carvalho, Rupi Kaur, Ryane Leão, nos textos de Conceição Evaristo e de outras tantas mulheres que ajudam a compreender a poesia em todos os momentos da vida.
Desde pequena é apaixonada pelas palavras – relata. Com o passar do tempo foi descobrindo certo manejo com elas, e com o apoio familiar, tendo também como referência sua avó, Luana decidiu se enveredar pelo mundo das letras.
Soares destaca a contribuição da literatura negra em sua vida, que tardiamente conheceu durante o mestrado, na voz do poeta Cuti. Após foi descobrindo outros e outras e reformulando seu repertório e sua forma de escrever. A poeta comenta que o Prêmio Pixé de literatura abriu portas para sua produção e como resultado aponta a publicação de seu primeiro livro em parceria com outras autoras negras e que foi prefaciado pela escritora Cristiane Sobral.
Doutora em Estudos literários, a professora e escritora observa que:
Quando falamos de educação falamos de uma teia complexa de relações. Vários fatores interferem na relação aluno-leitura-escrita. Não é possível analisar apenas o trabalho do professor ou apenas o empenho do aluno. É preciso articular a essa análise políticas públicas de educação, gestão escolar, família, Estado, entre outros elementos. Por isso, dizer que nossos estudantes da escola pública não são leitores é generalizar. Tive alunos no primeiro ano do ensino médio que amavam ler Harry Potter, assim como tive alunos que não sabiam ler. Não se pode generalizar. Isso reduz toda a riqueza da educação pública.
A poeta reconhece que o exemplo é o melhor caminho para criar vínculos com as palavras e em sua produção busca despertar no leitor essa atração. Sem mais delongas, deixo aqui alguns versos que trazem à tona a ancestralidade e a força lírica de Soares.
Benzenção
defuma meu corpo
com a fumaça do desejo
benze as minhas feridas
com a sua saliva
banho de cheiro e de afeto
descarrego de amor nas raízes
das minhas memórias
nesse ofício sagrado
vai me enfeitiçando
protegendo
curando
derramou cachoeiras
de palavras de amor…
morreu afogado na
correnteza da linguagem…
Aqui dentro
existe uma estiagem
sem fim:
chuva, água, abundância
seca, fogo, escassez.
Eu sou como o cerrado
Renasço com o fogo.