Cinco poemas de André Merez
André Merez, nascido na capital paulista em 1973, iniciou como letrista e contrabaixista das bandas Cathedral e Siso Símio nas décadas de 80 e 90. Cursou Letras e fez pós-graduação em Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Na graduação realizou pesquisa sobre o discurso do poder na obra de Plínio Marcos e na pós graduação defendeu tese sobre as relações entre o processo inferencial e as questões de interpretação de texto na verificação de aproveitamento de leitura. Leciona Teoria da Literatura e Gramática há mais de 15 anos e desenvolve pesquisas sobre música, artes plásticas e poesia. Autor dos livros Vez do Inverso (Editora Patuá, 2017) e Perfeição Acidental (inédito). Site: www.poesiaavulsa.com
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Liberdades
Folgam-me os laços dos sapatos
e deitam-me ao longe a gravata,
agora fluo diferente em liberdade
assistida.
Como placas que se acumulam
nas paredes túnicas adventícias
que abastecem o meu coração
ressequido.
E falsamente acalentado por sabores
e cores e cheiros e dores escondidos
nesse intervalo entre nascer e morrer.
*
Jardins
Dos aviltados e esquecidos
seres, que habitam o invisível
das consciências humanas,
nascem flores multicoloridas.
Hastes cortadas antes de brotar
passam ao largo dos meus olhos
e se não as percebo, ainda o meu
coração infantil e tolo se queixa.
Queixas tatuadas no peito,
vontade que não se finda
e nenhuma palavra esgota,
ou cura, ou benze, absolve.
E ainda que essa vileza morra,
seus frutos lançarão sementes,
por isso é preciso correr
para cuidar dos jardins.
Esterilizá-los, ao menos.
É necessário estar confuso
e encontrar em nossos bolsos
bilhetes de pessoas estranhas
com mensagens para decifrar.
Reorganizar as vidas todas,
sem deformar os sonhos.
Reorganizar as vidas todas,
e deixar as utopias acordadas.
Reorganizar as vidas todas
sem medo de se perder por aí.
*
O menino no cordel
O menino equilibrista
pendura-se no perigo.
No fio fino e arriscado,
estica-se seu destino.
– Chama a mãe, Zezé,
pra ajudar o menino!
– Deixa disso, pessoa,
vem acudir o franzino!
E o menino, distraído,
equilibra-se no cordel
da vida tentando não
descambar lá do céu.
*
História de algum brasileiro
I
Vejo se não roubo
e me roubam todo
e qualquer martelar
em ferro ou concreto
e massa cinzenta,
erguendo colunas,
alicerçando potências
que não são justas
ou medidas exatas,
dividendos estranhos
de um trabalho duro.
II
Vejo se não me canso
e me lanço passarinho
no ar cachaça e pão,
batendo asas de pedra
braços fortes e pesados.
III
Vejo se volto e descanso,
música da minha terra,
enquanto organizo feiras
em férias de salários
e rios brancos de peixes
e restos de fumo preto
nas pontas dos dedos.
IV
Vejo se não me dano
finalmente sem fé
na escadaria sem fim
de joelhos dobrados
e cabeça baixa diante
da cruz que me carrega.
V
Vejo se danço um samba
na noite não esperada
até que amanheça o sol
que esquenta a madrugada
e talvez seja, ainda assim,
uma promessa de felicidade.
*
Lições do rio I
Do vento,
do rio e
das árvores
aprendi
o divino
do tempo, o destino
e de cada dia o sol.
Aprendi e
aprendo;
vejo o rio,
seu fluxo
e horas e
rumores.
Liquido-me e
beijo o leito
de areias macias,
espalho uma voz
de aprendiz.
Cada margem
desse rio sou
e me sei assim
lados e lados
bordas e fins.
Não há marcas
de pegadas nem
restos de ventos
ou fósseis folhas.
Há o rio e nele
existo um pouco.
Há o rio e nele
há uma fração
de tudo e de mim.