Angela Davis resgata a luta de mulheres negras – Por Marilia Kubota
Na coluna quizenal “Outras faces”, Marilia Kubota publica resenhas jornalísticas sobre obras de autoras e autores independentes e da grande literatura, destacando escritos de mulheres não-brancas e de autoras e autores da diversidade étnica e sexual. Desta vez, o livro resenhado é Mulheres, raça e classe (Boitempo, tradução de Heci Regina Candiani, 2016), de Angela Davis.
Marilia Kubota é poeta e jornalista, nascida no Paraná. Autora dos livros de poesia Diário da vertigem (Patuá, 2015), micropolis (Lumme, 2014) e Esperando as Bárbaras (Blanche, 2012) e organizadora das antologias Um girassol nos teus cabelos – poemas para Marielle Franco (Quintal, 2018), Blasfêmeas: Mulheres de palavra (Casa Verde, 2016) e Retratos japoneses no Brasil (Annablume, 2010). É Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.
A imagem destacada na coluna é de autoria de Carlos Dala Stella.
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Angela Davis resgata a luta de mulheres negras
Mulheres, raça e classe (Boitempo, tradução de Heci Regina Candiani, 2016), de Angela Davis, é um clássico da luta contra o racismo. A ativista feminista negra ficou mundialmente conhecida nos 70, pela campanha “Libertem Angela Davis”. Na época, foi presa por participar de uma ação do grupo Panteras Negras. Depois de 1,5 ano, ela foi inocentada das acusações.
Na prisão, Angela escreveu parte do ensaio. No trabalho, ela explica como a questão racial e a questão feminista se cruzam, defendendo que o conceito de classe não deve ser sobrevalorizado sobre os de raça e gênero. Destacam-se tópicos que põem relevância à atuação da mulher negra: como escravas, na campanha antirracista, na conquista do voto, na luta contra os massacres de seu povo.
Um ponto interessante da discussão é a igualdade de condições entre mulheres e homens negros durante o período da escravidão. As escravas trabalhavam em condições iguais aos homens em minas de carvão e nas fundições de ferro, construindo diques e nas linhas de trem. Já as brancas eram inferiorizadas se comparadas aos companheiros. A era industrial tornou inútil o trabalho delas. Assim, criou o conceito de feminilidade, popularizado em revistas e romances. Mulher se tornou sinônimo de “mãe” e “dona de casa”.
Esta situação fez com que comparassem sua vida com a dos escravos. Ao longo de 1830, muitas brancas da elite ou trabalhadoras foram atraídas para o abolicionismo. Para elas, engajar-se no antiescravagismo era transgredir a feminilidade imposta.
As primeiras abolicionistas brancas foram Sarah e Angelina Grimke, da Carolina do Sul. A partir de 1836, começaram a fazer discursos em favor da abolição. A presença delas era algo inédito: “nunca antes mulheres haviam se dirigido a audiências mistas de modo tão regular e sem enfrentar gritos ofensivos ou escárnio por parte dos homens que consideram a oratória uma atividade exclusivamente masculina.” (página 53) As Grimke enfrentaram a oposição da igreja, para a qual ocupavam “o lugar e o tom de voz de homens como reformista política.” Com elas, também, a primeira ideia de uma luta interseccional. Ou seja, uma aliança entre mulheres e homens negros para conquistar direitos.
Mas foi uma mulher negra, a ex-escrava Sojourner Trouth, que salvou uma convenção de mulheres, em Ohio, em 1851. Homens hostis alegavam que a fraqueza feminina era incompatível com o sufrágio. O líder dos provocadores afirmou ser ridículo as mulheres desejarem votar. Não podiam sequer pular uma poça ou embarcar em carruagem sem um homem.
Sojourneur mostrou o braço musculoso e exaltou-se: “Arei a terra, plantei, enchi os celeeiros, e nenhum homem podia se igualar a mim. Não sou uma mulher? E podia trabalhar tanto e comer tanto quanto um homem – quando eu conseguia comida – e aguentava o chicote da mesma forma. Não sou uma mulher? Dei à luz treze crianças e vi a maioria ser vendida como escrava e, quando chorei em meu sofrimento de mãe, ninguém, exceto Jesus, me ouviu! Não sou eu uma mulher?” (página 71)
Sojourneur antecipava que o embate entre as feministas brancas e o movimento negro estaria por vir, depois da abolição, proclamada por Lincoln, em 1863. Em 1865, Elizabeth Cady Stanton escreveu uma carta em que prioriza o voto das mulheres ao dos negros. Na carta, a feminista evocava o “infame negro ignorante”. Intelectuais racistas incitavam o conflito entre feministas e o movimento negro. Para o maior dos abolicionistas negros, Frederik Douglass, o voto aos negros era prioritário, pois corriam risco de vida em massacres promovidos por gangues racistas, como os que aconteceram em Menphis e Nova Orleans, em 1866.
Em 1870, foi aprovado o direito ao voto dos negros. Mas vários estados do Sul o restringiram. Em 1888, o estado do Mississipi legalizou a segregação racial e ratificou uma nova lei que proibia o voto aos negros. Outros estados sulistas o seguiram e, em 1894, já estava consolidado o sistema de segregação racial.
Os conservadores do Sul usavam a luta feminista para se contrapor ao racismo. Os negros eram “uma multidão de negros ignorantes, depauperados”, enquanto as mulheres tinham “caráter e posição, com recursos e educação”. Em muitos momentos as feministas aceitaram esta contraposição, não entendendo que lutavam contra a mesma opressão social.
As mulheres conseguiram o direito ao voto gradativamente, até que em 1920 ganham pleno direito. Já os negros só teriam o voto estendido a todos os estados americanos em 1965, com o presidente Lyndon Jonhson. O trabalho de Angela Davis é fundamental por apresentar a construção da luta interseccional, demonstrando a intenção dos reacionários em criar conflitos entre os grupos minoritários. Graças a esta construção histórica, hoje os ativistas compreendem a necessidade de estabelecer uma luta conjunta.