Angélica atormenta as feras – Por Marilia Kubota
Na coluna quizenal “Outras faces”, Marilia Kubota publica resenhas jornalísticas sobre obras de autoras e autores independentes e da grande literatura, destacando escritos de mulheres não-brancas e de autoras e autores da diversidade étnica e sexual. Desta vez, o livro resenhado é Canções de atormentar (Companhia das Letras, 2020) de Angélica Freitas.
Marilia Kubota é poeta e jornalista, nascida no Paraná. Autora dos livros de poesia Diário da vertigem (Patuá, 2015), micropolis (Lumme, 2014) e Esperando as Bárbaras (Blanche, 2012) e organizadora das antologias Um girassol nos teus cabelos – poemas para Marielle Franco (Quintal, 2018), Blasfêmeas: Mulheres de palavra (Casa Verde, 2016) e Retratos japoneses no Brasil (Annablume, 2010). É Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná. Em 2020, lança seu primeiro livro de crônicas, Eu também sou brasileira, pela Editora Lavra.
A imagem destacada na coluna é de autoria de Carlos Dala Stella.
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Angélica atormenta as feras
Em seu terceiro livro de poemas, Canções de atormentar, (Companhia das Letras, 2020), Angélica Freitas inspira-se no campo da música para compor poemas. O título deve-se a uma performance com seis poemas, que faz referência ao personagem Ulisses, da Ilíada, de Homero. A autora mantém a verve humorística, parodiando obras da literatura universal, como em Rilkshake e Um útero do tamanho do seu punho.
As “canções” têm ritmos diversos, algumas com desenvolvimento de micro-narrativas, como “traíra” e “porto alegre, 2016”. Outras, são poéticas visuais compostas por fragmentos, como “micro-ondas”, “sentada no topo do mundo” e “as roupas vêm da ásia”.
Angélica registra crônicas sobre a saudade de um país que não existe mais. Ironiza a idealização modernista-tropical, com Carmem Miranda e Aquarela do Brasil :
sentada no topo do mundo
que saudade de você
carmen miranda
que sabia assovia
ai que sabia sambar
ai que sabia assoviar
oi
que sabia sambar
salte no globo comigo
vamos rever a aquarela do brasil
vamos metê-la num museu
vamos roubá-la do museu
vamos dar-lhe sumiço e esperar
pelo clamor popular
não nos apoquentamos
surfamos em saquarema
sacudimos os sambaquis
sincronizamos os sapotis
com as sucuris e os buritis
é bonito, é bonito
e tomando água de coco
é milhor
tome água de coco
mário de andrade
comigo
aqui é puro pampa
até o pescoço
por que ficar parada
por que viajar
diga ao povo que fico
que sabia assoviar
heroico, mas que saco
barriga pra dentro
peito pra fora
um livro em cada sovaco
que saudades do brasil
não
que saudades do brasil
não
que saudades do brasil
não
O riso mais cruel vem de “As roupas vêm da Ásia”, uma sátira do mercado globalizado, onde as roupas são confeccionadas em países que oferecem mão-de-obra a baixo custo. Nos grandes magazines, o personagem esquimó seria o perfeito comprador de uma geladeira. Na fábula da poeta, a vítima dos vendedores perde-se no labirinto do marketing e volta ao pólo norte de mãos abanando.
Num mundo em que tudo está à venda, não há ilusões. Tudo se transforma em mercadoria, até a subjetividade. Para combater o coração da fera capitalista, Angélica opta por uma linguagem acessível, usando o humor incisivo e o ceticismo. A clareza e a ludicidade derrotam a opacidade, em oposição a uma ideia de poesia como uma prática de uma classe distinta.