“As Duas Irenes” (2017)
As Duas Irenes. Direção: Fabio Meira. País de Origem, Brasil, 2017.
As Duas Irenes, estreia em longa-metragem de Fabio Meira, que também assina o roteiro, já no início apresenta o seu conflito e o desenvolve com suavidade, sem pressa, evitando explosões e arroubos emocionais. Na abertura, uma menina atira uma pedra contra o vidro de uma janela. Não há consequência pelo ato, mas o gesto apresenta sua consumição e revolta interna. A jovem é Irene (Priscila Bittencourt), 13 anos, que guarda a informação que o seu pai, Tonico (interpretado por Marco Ricca), tem outra família, e essa segunda união gerou uma filha também chamada Irene (Isabela Torres) e da mesma idade que ela. Homônimas, as duas adolescentes possuem personalidades distintas, fato que tem relação direta com a origem e criação delas. Enquanto a Irene, do casamento oficial, é curiosa, reservada e de uma família tradicional, a outra Irene é extrovertida, independente e precoce no que diz respeito às suas ambições e sexualidade.
Ao procurar a família da irmã, Irene usa um nome falso, o de Madelena (que, na verdade, é o nome da empregada de sua casa), e descobre duas mulheres que estão distantes do conceito de “destruidoras de lares”. Entre as Irenes, nasce uma relação que passa por estranhamento e cumplicidade, e que se consolida a partir de uma crescente afetividade e, até certo tempo, fusão identitária. Irene, a filha legítima, não tem afinidade com sua irmã Solange (Maju Souza) e se ressente com o conservadorismo que rege a sua casa, principalmente com as regras de comportamento da mãe (Suzana Ribeiro). No contato com Irene, a filha do segundo matrimônio do seu pai, ela parte em uma jornada de autodescobrimento, amadurecimento, começando a ganhar confiança, ao acompanhar a meia-irmã ao cinema, a passeios no parque e na mata, além de presenciar o despertar sexual dela, o que afeta Irene, fazendo sentir e refletir sobre questões que permaneciam alheias a sua realidade até aquele momento (através da meia-irmã, cujo corpo manifesta perceptíveis atributos físicos e já vive seus primeiros romances, Irene vai descobrindo seus desejos e assumindo uma identidade próxima a do seu espelho-Irene).
As Duas Irenes se passa no interior, em um algum rincão remoto do Brasil, em que as convenções sociais e as diferenças de classes ativam uma estrutura que demarca as fronteiras existentes nas relações entre homens e mulheres, assim como patrões e empregados. A cena em que se comemora o aniversário de Tonico é um retrato de um país que se moderniza, porém consegue manter uma composição familiar e vínculos de trabalho absolutamente retrógrados. Enquanto, os homens permanecem à mesa, as mulheres retiram o almoço e começam a trazer os doces para a comemoração. Nesse ínterim, Madalena (uma ótima Teuda Bara), a empregada, que também é a confidente de Irene (e, de certo, a responsável pela sua criação no que tange a afeto e cuidado) tenta terminar a sua refeição na cozinha, no que é interrompida para ajudar a levar utensílios para a sala de jantar.
Esses subtextos ganham dimensão com a direção de arte e figurino que colaboram na formação da imagem de um cenário interiorano/ rural que conserva um tradicionalismo que mantém relações hierárquicas de gêneros e sociais nas quais o silêncio – aceitação – normatiza casos como de Tonico. Nesse sentido, vale destacar o modo como o roteiro de Fabio Meira trabalha cada personagem e seus movimentos na trama. Fugindo dos estereótipos e julgamentos, o filme cresce ao focar à inquietude e à quietude feroz de Irene, já que suas ações e olhares criam a sensação de que a qualquer momento ela fará ruir o mundo de aparências que se estabeleceu a partir da decisão do pai de sustentar duas famílias.
A fotografia de Daniela Cajías exibe uma rica paleta de cores, usada de forma marcante para explorar a natureza (um azul do céu deslumbrante) e engendrar as diferenças e sentimentos nas cenas internas – por exemplo, contrastando a casa das Irenes, sendo que a da família abastada é asséptica, enquanto a casa/ateliê de Neuza (Inês Peixoto) é mais vívida. O trabalho visual de Cajías mostra-se suave, mas contribui na impressão de que algo está fora do lugar, dando relevo à angústia e ao suspense que acompanham a conjuntura. A fotografia de As Duas Irenes amealhou o prêmio em sua categoria no Guadalajara International Film Festival, edição de 2017.
Com as interpretações espontâneas e afetuosas de suas Irenes, Priscila Bittencourt e Isabela Torres traduzem a verdade da situação em que se encontram suas personagens. A dinâmica e a química entre as atrizes tornam verossímeis o enfrentamento silencioso inicial e a naturalidade com que afirmam o vínculo que nasce a partir desse contato. O inconformismo pela mentira e o carinho que tem pelo pai são demonstrados com vigor por Priscila Bittencourt, que consegue equilibrar a aflição de revelar o segredo com o êxtase das descobertas que tem ao lado de sua meia-irmã Irene, experiências que transformam a sua realidade, adormecida em meio à banalidade das convenções sociais. Marco Ricca também merece destaque pela dupla identidade de seu Tonico, um homem rígido em uma casa e liberal em outra. Um homem que aparenta acreditar no “direito” de desfrutar dessas vidas que constituiu e mantém para si. Marco Ricca foi eleito o melhor ator coadjuvante no Festival de Gramado 2017.
As Duas Irenes fala de um cotidiano que se despedaça com o descalabro das expectativas, que têm relação intrínseca com o que somos e com aquilo que se espera de nós. Um mundo de aparências e normas pré-estabelecidas que se revelam frágeis, já insustentáveis. E é no espelhamento entre as meninas que essa sensação de estar vivendo uma mentira se afirma (pelas interdições que lhe foram impostas), na interdependência que as fascina, perturba e completa.
Há uma ironia em As Duas Irenes, já que o nome das personagens vem do grego Eiréne, a partir da palavra eiréne, que significa paz. Irene é aquela que traz a paz, a pacificadora. Em um filme calmo em sua superfície, a ironia está no que permanece oculto no subterrâneo das emoções, a ponto de eclodir. As Irenes possuem a chave do segredo, a de aniquilar o território onde precisam conjugar a fantasia (de poder) dos outros.