CATAPLAU #2 – Escalpo e suas inflexões do real
Escalpo é sobre uma época fudida na vida do quadrinista Ian Negromonte, depois do fim do casamento, depois do processo de plágio em cima do seu último trampo, depois do fim da grana. É sobre o desespero legítimo de um velho chileno ilhado no centro de Sampa, seus dois papagaios e seus dois filhos hipotéticos. É sobre as vielas sanguinolentas de uma Paraty que quem só conhece a FLIP desconhece completamente. É sobre ditaduras, torturas, presos políticos, experimentos científicos. É sobre brincar de detetive, sobre uma road trip, sobre sebos uruguaios, sobre casas vazias, sobre viagens de ácido com e sem ácido. É sobre encontrar o ponto de equilíbrio numa daquelas esquinas feladaputas da vida, com o país convoluto e à deriva, quando o passado parece um amontoado de escolhas erradas e o futuro a única escapatória. É sobre romances policiais, Alzheimer, sequestros relâmpagos, preconceito racial, transgêneros. É sobre Hugo Pratt, Jodorowsky, Moebius, Foster, Raymond, Schultz, Tesuka, Millôr, Otomo, Crepax, os irmãos Hernandez. É sobre uma história deste tempo, deste zeitgeist, que vai das factuais manifestações de insatisfação com a despolítica brasileira às urgências de uma classe média afeita ao urbano computadorizado e à instabilidade amorosa, geográfica, profissional e financeira.
Porque é na verdade sobre tudo isso que Escalpo, o novo romance de Ronaldo Bressane, é difícil de definir, impossível de encapsular numa nota. Sabiamente a contra-capa não aposta na difícil tarefa de mastigá-lo pro leitor em prospecção, e recorta um trecho que mostra a força narrativa, não o conteúdo.
Bressane, que lança este aqui depois do experimentalíssimo e magistral Mnemomáquina, um romance-mosaico de ficção científica que faria K. Dick e Terry Gilliam balançarem os cachos inexistentes como se ouvissem um grindcore maldito, não tá brincando no play. (Aqui, os cachos seriam de Bolaño e Vonnegut.) A segurança narrativa do cidadão é óbvia:
“Devagar, ela pediu, devagar, ela reclamou, devagar, ela gemeu, e entre nós foi-se criando um ritmo, ela encolhia os braços sob seu corpo e eu me impunha aos poucos, os cabelos dourados se derramando sobre o piso da varanda, azulejos pretos e brancos reproduzindo um padrão em L ao infinito, e dentro de sua vereda estreita eu estava tão aconchegado como uma pérola numa ostra, encapsulado como um corpo em um túmulo, aconchegado em um espaço mínimo, ao mesmo tempo em que me cercava o grande vazio do apartamento, um planeta incrustado em sua órbita, como se soubesse que, pela primeira vez, estava com minha verdadeira mulher, a que tinha buscado tanto tempo em todas as casas vazias.”
pág. 21
Na verdade o maluco já lançou tudo que dá pra lançar em termos de escrita: HQ, poesia, contos, infanto-juvenil, romance, ensaios, críticas, reportagens, entrevistas, zines, traduções. Ganha a maior fatia do pão com jornalismo, cobrindo de tudo pra tudo que é veículo e atuando sempre que possível na zaga cultural, com contribuições para os portais Fluxo e Pessoa, por exemplo. Mas investe na literatura, esse vício de fudido, porque é obviamente um junkie dos piores, picado pela zika fantástica quando geral contrai a dengue do realismo tacanho.
Ronaldo Bressane
Me ferro aqui e talvez te ferre também fazendo esse aviso. Explico: a chave do fantástico demora a surgir no Escalpo. Mas ela vem, mansa, aos poucos, até que se escancara e te ergue pelos cabelos. É uma cilada falar pouco do livro e não fazer jus à sua pletora de desvios? Claro. Mas é uma cilada também falar demais, que é bem o propósito dessa coluna, então dos crimes o mais sangrento.
O primeiro capítulo, empolgante até a medula, narra o encontro de Ian com Miguel Ángel Flores, no centro de Sampa. Procurando um canto barato pra morar, o quadrinista topa com o velho escritor chileno. Miguel Ángel e sua fuga do Chile na época da ditadura de Pinochet, deixando pra trás duas namoradas grávidas, é tópico que vai retornar, dando finalidade ao livro com suas tentativas desesperadas de encontrar os herdeiros, enfim empregando os dotes duvidosos de Ian para seguir as pistas que o levam ao Chile, Uruguai e Paraty, no Rio de Janeiro.
Ian, por sua vez, ainda não superou muito bem o casamento desfeito com Naïma, e vai tentando preencher o vazio habitando casas vazias, rascunhando seus esqueletos. O término se concretiza quando ele, que confessa à esposa quase tê-la traído numa viagem, surpreende-se com os trocentos episódios de traição protagonizados por ela. Sem casa, sem grana, Ian vai se virando até que tem a mão, seu instrumento de trabalho, destroçada por policiais numa manifestação. É aí que mete de vez o foda-se e topa a proposta de Miguel Ángel. Não parece coincidência que em troca desse trampo lhe seja prometido o mítico canto pra sossegar, o próprio apê que abre este romance; o pertencimento parece ser o grande fantasma da obra.
O terço final do livro é situado em Paraty, pra onde converge a busca. O cenário não é coincidência, nem a riqueza de detalhes e a palpabilidade dos passos de Ian: Bressane escreveu o grosso deste livro na cidade. Na verdade, o primeiro capítulo foi o ingresso do autor pra participar da primeira residência literária promovida pelo SESC, em 2015. Morou no litoral paradisíaco por 3 meses, com ajuda de custo e tempo livre pra escrever. Depois de umas semanas se adaptando à ideia e de se estabacar no chão durante uma corrida na praia, o estalo veio e o primeiro draft foi excomungado em menos de dois meses. E é em Paraty, entre barcos e turistas, que o livro explode, ou implode, ou estremece em seu final surpreendente.
Entrevista de Bressane pro programa ComTexto, do canal Arte 1, apresentado por Manuel da Costa Pinto, onde fala em especial do recém-lançado Escalpo (set/2017)
Há, claro, numa viagem tão vertiginosa e múltipla, pontos altos e baixos, que vão variar pra cada leitor. Pra mim há, por exemplo, uma junção deles no capítulo 7, Psico Sour, em que Ian, já na busca pelo passado de Miguel Ángel, aceita investigar a ex-mulher popstar de um ícone da música gospel, investigação que acaba no apartamento novo dela e num ménage com uma amiga. A cena de sexo, que intercala imagens das torturas que o exército chileno praticou contra os prisioneiros na época da ditadura com a própria metelança frenética, é sensacional, muito bem dosada e hábil no incômodo que causa. Por outro lado, a repentina transformação de Ian num personagem policialesco e encharcado de coolzice noir não me pareceu lá muito crível.
Um ponto alto: o capítulo 9, Abduzidos, em que Ian visita a família (mãe com Alzheimer e irmã transgênero em Porto Alegre), é especialmente tocante. O mergulho no passado dá uma carne foda pro personagem, e daí pra frente ler Ian é ler um personagem muito mais real. Fora isso, nesse trecho mais calmo e pé no chão, emerge com naturalidade a prosa fluente e rica.
Um ponto baixo: achei problemática a plausibilidade de uma extensa cena em que Miguel Ángel recebe um casal de possíveis filhos, recém-vindos do aeroporto, e se perde em conversas e divagações acerca passado deles, seus gostos, as vidas de suas mães, num papo emotivo, pra depois revelar que já tinha, na mesa da sala, o envelope com o resultado do teste de DNA do laboratório, que descobrem negativo. Uma puta preparação prum deslocamento improvável de estranhos que voltam pra casa com o rabo entre as pernas. Dá pra creditar isso ao desespero de Miguel Ángel de encontrar seus filhos e sua dependência de pequenos momentos de paternidade schrodingerianas? Dá, mas não deixa de soar forçado. Por outro lado, Miguel Ángel narrando sua fuga diante do desespero da paternidade, gurizão só curtindo a brisa, é perfeitamente plausível.
Os nocautes que Escalpo dá no leitor, providenciados em parte pela linguagem afiada e fluida (as partes de Ian são narradas em primeira pessoa), desfilam pelo livro. Os diálogos são naturais:
“Amigos o caralho, quando tu tá fodido, os amigos são os primeiros a meter o pé na tua cabeça. A verdade é que não tenho cabeça pra ficar lendo besteira nas redes. Meu último post no feice virou um fórum em que zoavam todo o trampo que eu já fiz […] Não deu, velho, saí fora de tudo, não segurei a onda, não tenho estômago pro tribunal do feicetruque. Foda-se.”
págs. 40-41
Há pitadas constantes de humor:
“O porteiro, que tinha uma revista de sudoku sobre a mesa onde se apoiava como moribundo, parecia estar ali desde o início dos tempos; sua testa tinha tantos lençóis de peles dobradas que com elas seria possível esculpir umas três cabeças”.
pág. 16
Tem daquelas constatações filosóficas que resumem vidas inteiras:
“Sentia um estranho prazer em fuçar casas onde, sabia, jamais iria morar. Tentava adivinhar os antigos moradores, imaginava-me habitando as mansões, ocupando os amplos espaços com obras de arte, móveis, cores, festas. Ziguezagueava nas ruas atrás de placas de imóveis disponíveis, e todos os dias desbravava uns três endereços. Era viciante contemplar os aposentos fantasmais, cozinhas em que ninguém mais comia, quartos mudos, banheiros secos, salas insalubres em cujas paredes a poeira desenhava o contorno de velhos quadros, piscinas onde o musgo havia vencido a batalha contra o cloro. Quanto desperdício, ruminava, sentado num canto com o bloco apoiado nos joelhos rabiscando ideias para futuras histórias, quantas pessoas poderiam ser felizes nesses gigantescos acúmulos de nada. Por outro lado, captava algo repousante e magnético nos espaços em branco, como se fossem templos de uma entidade laica, cultos de um esvaziamento burguês, igrejas ocas em que o tempo zerou. Eu sempre dava um jeito de ficar o máximo possível até algum zelador vir reclamar, e mal visitava um endereço já salivava em busca do próximo. Na maioria, eram imóveis postos para alugar porque os proprietários haviam envelhecido e se mudavam para casas de saúde ou lares de parentes ou tinham morrido, imóveis grandes e deteriorados, cheirando a decrepitude, desvario e danação.”
págs. 17-18
E trechos que poderiam estampar quadros na parede, tamanha a potência evocativa:
“Minha mãe costumava contar que quando eu era bebê passava longos momentos olhando para a mão esquerda, essa mesma mão que fazia Naïma gozar, essa mão de dedos finos, longos e sujos de nanquim, a pela fina cortada pelo gume do papel de todo dia, essa mão fazendo o contorno do desenho a lápis com tinta, essa mão cujo destino havia sido traçado tanto tempo atrás, essa mão que bateu no meu pai quando ele me chamou de bastardo, essa mão que cerrou todas as malas das casas que abandonei, essa mão que levantou prêmios, essa mão que copiou rascunhos, essa mão que roubou ideias, essa mão agora morta que abria meu próprio corpo. Soprados pela maresia, os dreadlocks da Naïma negra se espiralavam ao redor de sua bela cabeça egípcia e giravam como as nuvens ao redor do vórtex. As ondas batiam pesadas no solo em explosões intermitentes que ecoavam no alto dos edfícios das dunas de ossos ao redor, e os leões-marinhos seguiam imperturbáveis investigando meu corpo aberto sobre a mesa de cirurgia.”
pág. 67
Bem como ganchos prontos pra virar epígrafes:
“Perder muitas coisas e não se sentir oco depois é o propósito de toda viagem.”
pág. 245
No trato da linguagem, a única coisa que me soou estranha foi uma tendência a deslocar os adjetivos pra antes dos substantivos, que credito à leitura massiva em inglês, traço, aliás, que vem se estabelecendo cada vez mais na escrita brasileira, talvez inconscientemente. Como exemplo, lemos, num determinado parágrafo, “gordíssima zeladora” e “triste prédio”, quando é de praxe visitar a zeladora gordíssima e o prédio triste.
A HQ Psico Sour, publicada pela La Tosca, que adapta uma cena do Escalpo
Dois anos depois da residência, tempo gasto revisando e aparando o livro, Bressane achou uma casa mais que apropriada pro romance: a editora paulista Reformatório, que vem fazendo um puta trabalho com a literatura nacional, com edições caprichadas, de trabalho gráfico incrível. Aqui, é claro, ajuda muito a arte belíssima de Adams Carvalho, com uma capa de vermelho chapado e Ian, nosso herói mulato, fumando um cigarro com o rosto dividido em painéis de HQ. Aliás, Bressane e Adams se juntaram pra dar vida a um pedaço do capítulo que citei lá em cima, o Psico Sour, antes do romance nascer, numa curta HQ homônima de tiragem honesta (e já esgotada) que foi lançada na Feira Plana de 2017. Nela, já dava pra sentir o potencial da história com o auxílio da destreza narrativa de Adams.
Escalpo tem uma mancha agradabilíssima de leitura e um trato bacana de revisão (ainda que existam falhas e gralhas, são poucas, num nível muito inferior ao que se convencionou esperar de uma editora independente). E é sem dúvida um livro que vai agradar leitores de vários espectros, por ser um livro de espectro variado. É o desejo desse cataplauzeiro que o multiverso de leitores de um autor tão ousado quanto o Bressa exploda. Escalpo é foda. Corra atrás. Vale a pena.
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Escalpo (2017)
Romance de Ronaldo Bressane
Editora Reformatório
256 pág. – R$40,00 (apenas impresso; partiu agilizar esse ebook aí, Reformatório!)