CATAPLAU #3 – Santa Clara Poltergeist é um caralhivro pulsante
Edifícios inteligentes + vigas de chip + labirintos de fibra ótica se encharcando sob pesadas nuvens deixam a Sampa futurista molhadinha, molhadinha feito a mulata que recebe no traseiro vaselinado a pica de Mateus, o protagonista. “E a trolha black desliza pro centro vazado do cu”. O primeiro parágrafo, de onde extraio a curta assertiva, temperado com a mais fina cepa de caudalosidade fawcettiana, sintetiza esse clássico dos anos 90, regado a muito sexo, tecnologia e absurdismos de todo gênero e grau. A bandeira é fincada de cara, aviso pros navegantes afeitos à limpidez e ao pudor que desembarquem antes que o navio meta as fuças num iceberg e tripulação se acabe numa fodelança orgiástica em direção ao fundo do mar.
Mateus é um “eletroblack” fodão de Sampa, do tipo que conserta qualquer eletrônico com chiclete e casca de banana, e que devido ao contato excessivo com as radiações elétricas perdeu boa parte da energia cerebral. Pra resolver esse pepino, dá um pulo no pronto-socorro neurológico, onde um psiquiatra perfura seu crânio e ali enfia um fusível, que deve ser recarregado de tempos em tempos. “O fusível funcionou como uma ponte de safena neuronal. Precário, mas emocionante paliativo para as desconexões cerebrais.”
Já a co-protagonista, Verinha Blumenau, vai de prostituta de beira de estrada a super-heroína e santa. O motivo: ao andar num descampado perto de casa, acha uma bicicleta enferrujada e resolve dar umas pedaladas. No meio do caminho o banco escapole e Verinha é acidentalmente estuprada pelo cano enferrujado, ferrugem exótica que a contamina, transformando-a numa legítima x-woman, capaz de controlar o magnetismo. Depois de se recuperar do ferimento e do trauma, resolve tirar proveito de seus recém-adquiridos dons paranormais e seu novo “Grelinho Uri Geller” e inventa um show cheio de performances que culminam no número da “buceta balística”. É assim, galgando os degraus do sucesso, que chega ao ápice do ramo: as boates de Ramayana Porsche em Copacabana.
Fausto Fawcett (centro) e a trupe dos Robôs Efêmeros, circa 1990, época de lançamento do livro
A racionalidade científica foi mastigada e engolida e não tem vez aqui. O leitor anda com o pé socado no foda-se. Fawcett pega o que vem à cabeça e mete num mundo que é, partindo do ano em que o livro foi lançado, 1990, um futuro-presente elevado à enésima potência tecnológica, sexual e mística. Carregar o fusível do cérebro com chupetas em baterias de carro? Feito. Menstruar por todos os poros do corpo um sangue sagrado que cura qualquer coisa? Feito. Meter no currículo do maior ator pornô do mundo a proeza de ter filmado uma obra-prima como “Vento Anal, onde se relacionava com aspiradores que o enrabavam e faziam sua próstata girar de prazer soprado provocando ejaculações foguetíssimas”? Feito. A graça pro leitor é justamente essa: se desligar de qualquer amarra lógica e curtir uma trip que exala vitalidade e litros de gozo por página que muitos livros não comportam em trezentas delas.
Nem é preciso salientar, a essa altura: não é pra todos. E também não significa, necessariamente praqueles a quem o livro pega na jugular, que acompanhar a viagem de Mateus pra Copacabana, no intuito de salvar a Santa Clara Poltergeist, e os desdobramentos que lá se dão em sua busca pelo ovário-missíl nos subterrâneos do bairro, seja pura brisa. O livro por vezes acaba vítima de seu próprio trunfo: a caudalosidade galopante, que Fawcett empresta à explicação de conceitos que são, obviamente, estapafúrdios, e que os leitores que já embarcaram na jornada aceitariam sem o revestimento técnico-científico-ocultista-místico que lhes empresta e que freiam a narrativa. Por outro lado, desmembrada, essa mesma narrativa se torna uma enciclopédia de abstrações malucas e ainda assim surpreendentemente embasadas, que fecundariam dezenas de outros livros e histórias. Outro alerta: não estamos diante de uma trama costuradinha. O final soa apressado e esburacado se comparado com a composição detalhada do início.
No entanto, nada tira o brilho do furor narrativo. Verinha, que se revela espécie de reencarnação de Clara Vornheim, a alemã “que enlouqueceu Templários e povoou os sonhos e pesadelos de todos os bárbaros”, ambas detentoras da libido absoluta e hábeis mestres da energia kundalini, de onde provém seu poder de cura, ocupa suas horas no calorento Rio de Janeiro enquanto Mateus não chega. Faz, entre outras coisas, uma visitinha ao orgiódromo, disfarçada de Maitê Proença. Parece não haver limite algum na ambientação de Fawcett. É preciso mergulhar de cabeça nessa Copacabana modificada por uma falha magnética baixa que se torna um dos cenários mais eletrificados da nossa literatura.
Fawcett em anos mais recentes
Copacabana é isso:
“Sofisticados camelôs do MIT, do Centro Europeu de Investigações Nucleares, da Unicamp, armavam seus tabuleiros equipados com miniaturas de reatores, colisores, detectores, ímãs e dispositivos geiger… Em frente a padarias, cabeleireiros, confeitarias, concessionárias, lojas de antiguidades, enfim, qualquer lugar com epicentro de radiação. À fauna humana do bairro foi acrescentada gente da primeira, segunda e terceira divisões científicas, dissidentes das tecnologias de ponta, eremíticos pesquisadores silícicos, astrofísicos entediados com esse negócio de mutações cósmicas observadas, querendo sentir na carne o cosmos em vagalhões de energia. Os mais variados especuladores das mutações na espécie humana e na matéria que a cerca. Todos alugando por qualquer preço barraquinhas de pipoca, burro sem rabo, cabine de chaveiro, cabine telefônica, mesinha de restaurante beira-mar, barraquinha de cachorro-quente, buraco de metrô, áreas de serviço, carro de pamonha, elevadores, pra instalar miniaturas de laboratório e entregar-se à pesquisa, já que, afinal de contas, não é todo dia que um lapso dimensional trazendo fissões, fusões, espirais de radiação e turbulências psíquicas e sensoriais aparece.”
pág. 60-61
E isso:
“Céu de televisão piscando. Plânctons dourados geneticamente fabricados e jogados na praia brilhando. Calcinhas flutuando e gavião ghettoblaster. Mateus ouve o gavião-equipamento de som jogar rasantes de Vivaldi nos terraços e helicópteros turísticos do bairro.”
pág. 91
O que dá vazão a cenas belíssimas como:
“Uma lua humilhada pela paisagem de circuitos visuais entrelaçados de Copa surge inchada atrás da estática e das calcinhas de lingerie sopradas pelos canhões.”
pág. 121
E a conceitos bizarros e brilhantes como:
“Verinha sente que sua fantasia biológica de Maitê começa a escorregar da face e das coxas e dos seios. As fantasias genéticas são conseguidas em butiques de clonagem. Corpos indumentários. Verinha de Maitê esbarrou em Ava Gardners, Kim Basingers, Stallones, etc… As roupas têm autonomia de três horas e depois despencam como pelancas. São recolhidas por mendigos, que se vestem com pedaços dessas roupas genéticas. Fragmentos de Maitê Proenças e Ava Gardners servem de indumentária de pelanca genética pros fodidos de Copa.”
pág. 95
O narrador do romance é figura ativa, interferindo na história, trocando o foco quando acha já deu disso, bola pra frente ou pra trás. A linguagem é igualmente enérgica e inventiva. Fawcett cria termos e expressões sem antepara, se deixando levar numa ginga joyceana anfetaminada. Aqui, por exemplo, o verbo larinjetar parece caber como nenhum outro:
“Vera chupou os sparrings com técnicas de sugação e estimulação impressionantes. Aplicou linguadas, roçadas de céu da boca, sopradinhas domadoras de glande e larinjetou os caralhos na garganta pra lamber os ovos com a boca atochada de carne pulsante.”
pág. 33
Muito do ritmo e das escolhas sonoras são fornecidos, sem dúvida, pela vivência musical do autor. Vocalista e guitarrista alçado a ícone do rap rock, rodou o país com seus shows performáticos. Música e literatura se alimentam. Em sua estreia com o álbum Fausto Fawcett e os Robôs Efêmeros, de 1987, popularizou sua “Copacabana Blade Runner” e estourou com o hit Kátia Flávia, a Godiva do Irajá, posteriormente gravada pela cantora Fernanda Abreu, com quem Fawcett seguiu colaborando. Kátia Flávia se tornou personagem. Básico Instinto é o título tanto do seu terceiro álbum quanto da sua primeira coletânea de contos, com letras derivadas deles ou vice-versa. Santa Clara Poltergeist não fica de fora; o livro virou tanto um show quanto uma música homônima.
Santa Clara Poltergeist, a música (1989)
Classificada como obra cyberpunk pela presença de conceitos tão caros ao sub-gênero (tecnologia invasiva e apetrechos computadorizados a rodo, caos urbano resultante de expansão desenfreada e superpopulação, violência gráfica, personagens do submundo, resistência ou insatisfação com a autoridade estabelecida, experimentação e apreço pela linguagem, visual rico e poluído), o livro extrapola essas amarras e, mais que isso, é autenticamente brasileiro. Sem dúvida se enquadra naquilo que o pesquisador e escritor Roberto de Sousa Causo chama de “tupinipunk”. Fawcett diz não ter lido os monstros da literatura cyberpunk antes de escrever Santa Clara Poltergeist, mas definitivamente estava sintonizado no mesmo zeitgeist pré-internet, em que a popularização dos computadores e a velocidade das inovações tecnológicas pareciam apontar um mundo muito diferente, e bebeu da estética de Blade Runner, o pilar do gênero no cinema, adaptado da obra de Philip K. Dick.
A reedição do selo Encrenca, da editora curitibana Arte & Letra, recebeu cuidado louvável no design gráfico, num formato ligeiramente maior que o dos livros de bolso, com ilustrações belíssimas em PB de Theo Szczepanski que remetem à atmosfera da obra. Vale lembrar que pelo mesmo selo também foi relançada a coletânea Básico Instinto, sua irmã em termos gráficos. Além da introdução original de Hermano Vianna, um dos idealizadores do Overmundo, há uma nova introdução do escritor, pesquisador e papa do cyberpunk no Brasil Fábio Fernandes, contextualizando a obra 24 anos depois do seu lançamento (esta edição da Encrenca é de 2014 – também vale a pena ler a entrevista do autor publicada no blog da Encrenca, rica e irreverente). Quanto ao mal das editoras pequenas, que é a falta de apuro na revisão, este livro começa bem mas adere à cota básica na segunda metade, com uma reincidência especial de espaços duplos (danosa a leitores com TOC), mas nada que impeça o proveitoso mergulho nesta obra interessantíssima, vigorosa e única na literatura brasileira.
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Santa Clara Poltergeist (2014/1990)
Romance de Fausto Fawcett
Editora Arte & Letra – Selo Encrenca
144 pág. – R$28,00 (apenas impresso; partiu agilizar esse ebook aí, Arte & Letra!)