Ceci n’est pas uma crítica literária – texto em torno de “Ao jeito dos bichos caçados” (2017) de Otávio Campos
Em seu potente prefácio ao livro de poemas Ao jeito dos bichos caçados (Enfermaria 6, 2017) de Otávio Campos, Ismar Tirelli Neto recorre ao também poeta Horácio Costa para apontar que há, na poesia de Campos, uma oposição à “obnubilação programada” das sexualidades não normativas – oposição essa igualmente programada e cada vez mais recorrente, se atentarmos à produção das duas últimas gerações de poetas brasileiros LGBTQ (pelo menos), que se colocam como tais em seus textos. Em outras palavras: trata-se de oposição feita a partir de autores textualmente (nos dizeres de Tirelli Neto) LGBTQ.
Parece-me especialmente importante em tal apontamento o abandono de certa utopia: o abandono do faz de conta formalista da separação essencial entre escritor e voz textual (ou escritor e narrador). Esse movimento me parece positivo por destronar a opinião bastante enraizada, mesmo em grupos ditos progressistas, de que haveria categorias artísticas universais que prescindiriam de marcações raciais, sexuais e de gênero do indivíduo que cria arte.
A ideia de que um autor alemão (ou francês, ou estadunidense, ou brasileiro) escreva no início do século XIX (ou XVIII, ou XX, ou XXI) uma obra de caráter atemporal e universal é de uma ingenuidade que, não fosse violenta, seria até comovente. Felizmente o século XX viu se fortalecer a universalidade artística de que não há universalidades artísticas. A poesia de Otávio Campos vem fazer parte desse longo e intrincado quebra-cabeças das inacabáveis (e só parcialmente partilhadas) experiências humanas metamorfoseadas em arte. Ainda que se tente, digamos, descrever objetivamente uma mesa com peras e um jarro d’água, quem o faz necessariamente se apresenta na coisa feita: nas escolhas, nos recortes, no projeto mesmo de objetividade, nas possibilidades e meios factuais de produção artística, na recepção alheia frente à obra de arte. Ou:
“Você consegue contar
a história do personagem
que não está
[…]”
[trecho do poema “Sequência”]
Dentro do caleidoscópio de possibilidades criativas do autor LGBTQ (naturalmente limitadas, como as de qualquer outro sujeito), Otávio Campos parece fazer frente a dois perigos que Tirelli Neto caracteriza nos seguintes termos: “a “boa e velha” violência patriarcal e também o perigoso descanso prometido por vertentes mais assimilacionistas do pensamento queer”. Enquanto algumas poéticas não normativas nem ao menos vêm à luz por conta do primeiro perigo, outras ganham ridículos tons pastéis por conta do segundo. Seria possível afirmar que na poesia de Otávio Campos o papel de protagonista fica reservado à violência: à violência sofrida por certos corpos no Brasil do início do século XXI – corpos esquivos, desconfiados e receosos ao jeito dos bichos caçados. Ou:
“[…]
É próprio da violência
que sigamos calados
o corpo limite
o que te atravessa”
[trecho do poema “A última experiência dos nossos tempos”]
***
Suspensa a diferenciação entre escritor e voz textual, não quero com isso dizer que a leitura da poesia de Campos (ou de qualquer outro poeta) se esgote em representação da realidade experienciada pelo escritor gay de RG e carteira de vacinação que assina o poema – ainda que tente representar a realidade mais rasteira, creio que nenhuma obra de arte realmente o faz. Ela é necessariamente transmutação do real em algo outro, em outra instância na qual as coisas já não são coisas, e sim objetos artísticos nascidos a partir de traços de coisas.
Pequena e diletante incursão em filosofia: Hans-Georg Gadamer (alemão do século XX, sim, mas que tentou traçar como regra de interpretação correta de qualquer coisa o fato de não haver interpretação correta de nada) supõe em seu Verdade e Método (Wahrheit und Methode, 1960), em linhas gerais, que nenhum processo hermenêutico ‘revele’ ou ‘encontre’ o sentido de nada. O processo hermenêutico seria um processo de mão (no mínimo) dupla, no qual intérprete e coisa interpretada dialogam colaborando com traços próprios – “horizontes” nos dizeres de Gadamer –, de modo que o resultado de tal processo seria uma “fusão de horizontes” (“Horizontverschmelzung”), ou seja, uma compreensão. Assim, abre-se mão da noção de que o sentido seria algo estático sob o véu do texto (refiro-me aqui a texto num sentido amplo, como ‘coisa a ser interpretada’, não apenas ao texto escrito), à espera do intérprete que o encontraria e desvelaria; e se traça outra noção, a de que o sentido do texto é criado no momento mesmo da leitura. Parece-me especialmente interessante o modo como tal noção nos afasta tanto de 1) supor que haveria um sentido correto e único no texto quanto 2) de cair em relativização completa da interpretação (algo como “tudo se interpreta de tudo”). Afasta-nos de 1) pelos motivos acima expostos, e nos afasta de 2) por indicar que a interpretação necessariamente se limitaria pelos horizontes em questão (nossos e do texto).
Essa breve incursão à filosofia alemã da linguagem se justifica pelo seguinte motivo: parece-me que Otávio Campos (ou qualquer autor textualmente [nos dizeres de Tirelli Neto] LGBTQ) constrói como horizontes explícitos de seus textos a experiência do corpo LGBTQ (no caso, gay), de modo que esse elemento tenha um papel central nas subsequentes fusões de horizontes. Isso, é claro, não nos obriga a uma leitura que leve em conta tais horizontes (afinal, o leitor pode não conhecê-los ou partilhar deles), mas torna imediata e irreversivelmente notada a questão do corpo gay a qualquer um que esteja minimamente informado acerca do que ocorre com tal corpo no contexto da criação factual da obra (Brasil, início do século XXI). Quando o autor não é textualmente LGBTQ fica ainda mais complicado identificar tais horizontes, apesar de haver sempre alguns, ainda que implícitos, já que um corpo LGBTQ existe como tal no mundo antes e depois de assinar um poema.
Da mesma forma e pelo menos motivo, não se pode limitar a leitura de tais obras a representação (já apontei o problema, ao menos ao meu ver, de se usar a palavra ‘representação’) da experiência de tais corpos – e isso pelo simples motivo de serem esses escritores factuais muitas outras coisas além de LGBTQ. Assim, creio que autores textualmente LGBTQ nos apresentem o desafio de percebê-los como tal sem, no entanto, confiná-los a apenas isso. No caso específico de Otávio Campos é preciso ter em mente que em apenas meia dúzia de poemas do livro são colocados textualmente elementos que remetam à questão do corpo LGBTQ (especificamente em alguns poemas da terceira parte do livro, “O desejo e outras armas de corte”). Nos poemas restantes isso não é um horizonte do texto. Desse modo, creio que o diálogo hermenêutico gadameriano (ou seja, processo no qual ambos os elementos – intérprete e coisa interpretada – tomam parte, não apenas aquele nem apenas este), que é respeitoso por definição por pressupor que não haja soberania nem do intérprete nem da coisa interpretada – creio que o diálogo hermenêutico gadameriano apresente uma solução satisfatória ao problema da interpretação: ainda que o intérprete/leitor venha com seus horizontes, eles só se atualizam em diálogo hermenêutico à medida em que dialogam com horizontes da coisa interpretada. Em Ao jeito dos bichos caçados de Otávio Campos a questão do corpo LGBTQ aparece de modo escasso. Talvez a razão extratextual para o peso central que se vem dando (inclusive neste texto) à questão LGBTQ no livro de Campos (que, repito, apresenta abertamente tal questão apenas em meia dúzia de poemas) se depreenda do momento histórico no Brasil do século XXI: a aniquilação de corpos LGBTQ traz um caráter de urgência à presença de tais corpos no máximo possível de espaços, culturais ou não. Segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB), houve 455 mortes apenas em 2017; o grupo ainda dá angustiantes, terríveis detalhes: dentre elas, as mortes de travestis são de modo geral por tiros ou espancamento na rua, as de gays são por asfixia ou esfaqueamento em casa.
Essa aniquilação é mais regra do que exceção, mas me parece que a questão ganhou maior visibilidade nos últimos anos.
Ainda é cedo para dizer em que direção a fortuna crítica de Ao jeito dos bichos caçados de Otávio Campos tenderá a seguir. Espero que em muitas.
***
“Os corpos fraturados”, título do poema que abre o livro, poderia tranquilamente ser reaproveitado na caracterização da linguagem de Otávio Campos: um corpo fraturado é a linguagem, ou corpos fraturados são suas muitas veredas. Outra possibilidade é a referência mais direta ao corpo LGBTQ brasileiro, mas a análise dessa possibilidade eu deixo para outro texto. Da leitura desse título como caracterização da linguagem de Campos se aproveitariam ao menos duas coisas: 1) a atenção do poeta à materialidade da língua que usa e pela qual é usado – sua atenção ao corpo da língua/linguagem, enfim, ou, para retomar Valéry citando Mallarmé: “Degas, não é com ideias que se fazem versos, e sim com palavras!” – e 2) seu caráter fragmentário. Muito já se disse em matéria de literatura brasileira contemporânea sobre “o caráter fragmentário” da obra de certo autor ou certa autora, a expressão se cristalizou de tal forma que se tornou um clichê da área literária, mas não posso me furtar a caracterizar também a linguagem de Campos dessa maneira. Leiam-se os enjambements – já apontados por Tirelli Neto –, as quebras narrativas sem indicação gráfica, a inserção de textos em línguas estrangeiras (inglês e espanhol), a ausências de sinais de pontuação, o nonsense de certas imagens (“latitude invertida das letras” e “cicatriz de sintagma” são, por exemplo, duas delas pescadas agora ao acaso no poema “Primeira cena”), a mescla de linguagens privada e pública (em poemas como “O aeroporto”, “Baia”) e o uso de grafemas atípicos na tradição poética ocidental canônica (o “&”, por exemplo, com suas alusões – não só – ao mercado financeiro, às companhias empresariais).
***
Há uma estranha limpeza na linguagem aparentemente caótica de Otávio Campos. Talvez pela ausência de sinais de pontuação. A ver.
***
Mommy
“Hoje tivemos
dia difícil talvez
porque ontem
ao cinema assistir
Mommy ninguém
comentou coisa qualquer
sobre o filme falamos
a forma como ele abre
os braços empurra o quadro
nunca mais nos falamos
ninguém arruma
mesa para o café
comemos em silêncio
não me levanto
da cama temos medo
de sair da casa talvez
por conta do mar
da forma como
a maresia come
as coisas como um bicho”
[Ao jeito dos bichos caçados, página 27]
***
Interessante seria saber até quando o ato de afirmar 1) que não há obras universais e 2) que a obra não está descolada do mundo carregará esse travo tragicômico semelhante ao que se experiencia ao se estourar o balão de uma criança.
4-6-2018/5-6-2018
Matheus Guménin Barreto
__________
(Imagem: detalhe da capa feita por Gustavo Domingues)
Matheus Guménin Barreto (MT, 1992) é um poeta e tradutor brasileiro, além de, atualmente, doutorando da USP em tradução do alemão. Estudou também na Universidade de Heidelberg. Traduziu Bertolt Brecht e Ingeborg Bachmann e é autor dos livros de poemas A Máquina de carregar nadas (2017, 7Letras) e Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (2018, no prelo). Integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Sorbonne.
Otávio Campos (MG, 1991) é poeta e editor, além de, atualmente, doutorando em Estudos Literários. Publicou os livros Distância (2013), Os peixes são tristes nas fotografias (2016), Outros tipos de disparos (2016) e Ao jeito dos bichos caçados (2017).