Chorava ela também água quente
em frames lentos
ela imaginava
o volume que seu próprio corpo
dava ao quadro
e enquanto se deixava ficar
a água quente que caia sobre os ombros
dava trilha àquelas imagens
contornos de fantasmas esquecidos
riscos de memórias inventadas
através do vidro embaçado
assistia a si mesma
observava
a vagarosidade dos poucos gestos
o ganido enroscado no céu da boca
os estalos dos joelhos se arcando
o dobrar dos dedos de cada mão
lentos
apertando
apertando
o som da dor
ao mesmo tempo em que se via
encenava
sentia
os pingos quentes arranhando a testa
e deixava a boca ceder
aberta…
como se coubesse naquele vazio
exagerado
entre os lábios ansiosos
um volume todo de pavor
berrava com silêncio
berrava com todos os músculos da face
rumorejava sigilosamente
e enquanto nada acontecia
o bulício da água
os minutos no chuveiro
interrompiam os ritos mortos de cada dia
deixava-se
e se deixava vigiar
pela doce voz do outro lado da porta
pela voz serena, zelosa e alheia
depois
chorava ela também água quente
e respondia:
“…tudo bem”.