Seis poemas de Cibely Zenari
Cibely Zenari é poeta, cantora e psicóloga. A poesia transborda os suportes esperados. Autopublicou os zines Tril’orgia. Autora da série multilinguagem Eufeminismo, composta por cartazes com sangue menstrual, performance e produção de objeto poético. O universo feminino é produtor e produto de sua pesquisa. Ser mulher é ciclar o tempo desesperado. Vocal e composição na banda Macabea. Em 2018 publicou o livro 12 Contrações: Guadalupy pelo selo Doburro e o livro online Cartas de amor demais pela Erra publicações. Também publica sob o pseudônimo Clara Zopa nas redes sociais.
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Carta não enviada
já se passou um aniversário do menino desde que se foi
ele já escreve o nome
já usei 3 pacotes de sal
já emagreci e depois engordei
tantos vestidos que vc ainda não viu
2 livros de prosa, 2 de contos e outros poesia
encontrei a Hilda completa e não te falei
a parte elétrica do chuveiro da casa deu um problemão
limpei o filtro da nossa máquina de lavar
nosso colchão tá ficando ruim
já usei alguns pacotes de camisinha
já morri por dias consecutivos
descobri novos compositores
voltei aos palcos sabia?
já quase me apaixonei, mas é sempre quase
já fiz novas melhores amigas
já me senti tão inerte que tive que correr quarteirões
já apareceram novos brancos e os cabelos cresceram muito
já fiz 2 depilações anais
já gastei caixas de lenço na terapia
aumentei a frequência
já mudei mas continuo a mesma
já me masturbei com vc em meu pensamento
já escrevi kilômetros
escrevi um caderno de amor inteiro
já continuo vendo suas mãos mexendo entre as minhas
já tentei te sumir de mim
já te bloqueei
já te desbloqueei
já te tachei de Grande Filho da Puta
já continuo moendo pedaços
já nem sei como vivo
já esqueci seu aniversário
meus amigos já não me aguentam mais
já?
já sonhei noites e noites
contigo.
Castigo
*
um golpe político, é assim
de dentro da confiança e entrega
– a punhalada –
‘você está fora, fora’
foi o ano
depois dos 30 anos: os golpes vieram
na rua os punhos todos em riste
eram também por essa indignação
do amor que amou demais
sobre ser coisa de pegar, carne mesmo
as peles sabem o que querem
os cheiros têm um fundo que permanece
grudam na parte mais profunda dos neurônios
por isso não saem de lá
os golpes valem
para que as pobrezas perpetuem
ainda sim,
você vem em mim buscar seus restos
pois ficaram sobras e sobras
sem encontrar cemitério onde morrer
sobras líquidas de menstruação e porra
(salivas quando se bebe se tornam poção)
um poço caudaloso
o que babamos por tantas glândulas
ficamos aqui,
latinos, fodidos e friorentos já no outono
não sairemos desses séculos de acumulação territorial
existem pessoas que possuem um país dentro desse país
latifúndios alienados a uma pessoa só
jamais os salários resistirão
a história toda nunca poderá ser contada
fica uma cozinha vazia demais
a riqueza serve para distrair
a pobreza embrutece
mania de magreza
& de abraçar a solidão
*
fomos a pinheiros.
os primeiros
a rir dos bueiros
beijos
à beira da faixa
taq taq taq
cardia
fugimos
de tudo que prendia.
mas o pêndulo
nos colidiu
ao centro,
oeste
de miocárdios
fora da rota.
direto
para a enfermaria
internamos
nossos dias.
*
não me dêem botons porque não uso
batons já uso
às vezes como verdade, outras como escudo
não me mandem cintos porque pouco os uso
uso cintura solta em blusinha velha
não uso pó
não uso ipod
não uso fone
uso o silêncio do tédio
uso disfarces de pensamento
por isso não uso ouro
uso inocência para que não pensem nada
sobre a jaqueta lisa e a calça larga
a astúcia no bolso
fechado à lacre
na sola um all star preferindo:
apenas
um pé ao lado do outro:
a vida em uso
*
tipo ana c.
– faz um risoto de qualquer coisa
– pena que não goste do chet cantando
– não quero saber de dinheiro
– tô ouvindo:
veganismo, enxofre e ozônio
– conta um medo
assim dá tesão
– distrai um pouco e aguenta o silêncio
(quero ser seu tabaco enrolado,
os dedos ficam bonitos)
– te ensino a música do musguito
(falhe e se explique falhe e se explique)
(vamos ficar doentes, circular vírus)
– a cama é um barco no oceano
índico
(não pensa não pensa,
flagre)
– vamos comprar um lenço?
– hora de lavar a coberta
– daqui que eu passo essa pomada
– você precisa ler isso daqui
(vou aproveitar hj pra tomar um porre)
– parece que ele se matou
– tua mãe, atende
– você volta quando?
*
vizinha ruiva
a vizinha uiva
por horas
a Carla sofreu um acidente na sexta série
quase morreu
a cara deformada dela no hospital
os meses para grudar a perna
eu consegui pouco
ser sua amiga
algo se quebrou nela; em nós
eu vi a cara da vizinha que uivou a noite toda
cara de maluca
eu louca no andar debaixo
a irmã da Elisangela morreu de leucemia
mamãe disse que era câncer no sangue
uma criança morta
eu era uma criança viva
sozinha
quando chega perto a morte
a vizinha uiva o tempo todo
será que já ama
ou será só sexo
inveja, sinto inveja
como transar com o filho do lado?
Carla se casou com o rapaz do acidente
Carla do colégio católico
uma dona de casa que segue-o-marido
para sempre
logo ela – minha heroína
a primeira a namorar, a primeira a menstruar
a vizinha grita
mas qual a hora do orgasmo?
grita em falso?
ele tá me enrolando
ele me disse que eu que como ele
Elisangela e Carla deprimiram
mudaram
em plena infância
no meio da saia xadrez
de shorts por baixo
porque a saia é curta
mamãe dizia
‘homens procuram calcinhas’
mesmo de meninas quase mortas
por que meninas são mulheres sem pelo
nos olhos podres dos pobres homens
a vizinha de manhã com cara de gozo
eu querendo eu querendo
eu morrendo
de solidão
e de buceta molhada
transar antes de morrer
é uma regra
boa de se fazer ao máximo
vizinha,
se eu pudesse dizer
que sua intimidade vaza
pelos berros
certos
nas janelas erradas
vizinha você é só?
vizinha, tomara que o Zé
venha ao menos me comer
Carla e eu ficávamos horas no telefone
sem meu pai saber
eu deitava à tarde
no meio do corredor
que excitante ouvir do seu namorado
eu também por ele era
apaixonada
olhos verdes de Carla
ele só podia escolher a ela
vizinha,
só porque seus peitos são grandes?
Carla se casou
teve filhos
tem tv
Elisangela
idem
tem marido
eu não tenho mais assunto
são filhos demais
escovas no cabelo
só penso em sexo literatura e política
eu tomo cachaça
quando a vizinha sobe as escadas
meu coração acelera
insônia
por meu próprio
sexo
vida solo
mãe
hétero
Zé, a morte é certa
corre
me come você
também
a vida, etérea
é só uma fome
vizinha,
grite
livre
grite por nós