Cinco ciclos de poemas de Mar Becker
mar becker (marceli andresa becker) nasceu em passo fundo/RS e atualmente mora em São Paulo/SP. tem formação em filosofia e especialização em metafísica e epistemologia. ainda não publicou livro.
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já viste como se despe uma mulher do interior da serra gaúcha?
não há cor em suas unhas, e os fios dos seus cabelos secam ao natural. a planta dos seus pés é mais áspera que a das mulheres das cidades grandes, porque no fim de semana ela caminha descalça no chão de pedra do quintal. estendendo roupa. comendo uva colhida de uma videira tímida desse mesmo quintal (tímida porque no clima do brasil a uva não vinga; ainda assim, no interior serrano do rio grande do sul, há famílias que insistem em cultivá-la)
essas famílias são tristes. há todo um reino de azuis em jogo
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ela se despe. tira a calcinha branca de algodão, velha – sei que é velha porque não a imagino mais tendo o aplique de laço que geralmente acompanha o modelo (no meio do laço, no ponto de encontro das curvas do laço, uma pedrinha de strass). o aplique se soltou, por causa do tempo, das tantas lavagens
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é domingo; depois de amar e ser amada, ela dorme, de bruços. as pernas semiabertas, imóveis, numa geometria em que poderíamos vislumbrar o ângulo do telhado da casa. quero dizer: o telhado da casa como se o tivéssemos visto antes de sua constituição objetiva, numa fase de pré-realidade
ao anoitecer levanta-se e caminha em silêncio pelo corredor; pela sala
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a mulher do interior da serra gaúcha lava a calcinha sempre no banheiro, sob esse outro paradigma náutico – quando no vapor o espaço-tempo resgata o mar como desolação. e a certa altura do banho nenhum limite separa o que é o vapor da umidade típica de sua respiração e o que é o vapor da água do chuveiro
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por vezes uma pássara prenha entra em algum dos vãos do beiral do telhado. com o ninho já construído, ela se instala e põe seus ovos. em períodos de chuvas mais intensas, de ventos mais fortes, é comum que um dos filhotes caia – recém-nascido, horrível. roxo. sem penas, só cabeça e bico
no dia seguinte a mãe varre o quintal e junta o cadaverzinho com a pá. e ocorre que, em meio às cascas de uvas comidas (um montante delas, reunidas num canto, entre folhas secas), em meio a essa escola rude de tinturaria do que foi vindima
e fome
esse cadaverzinho se torna ainda mais roxo; passa despercebido
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o banho demora em geral uns dez minutos; é um banho rápido, os chuveiros, muito antigos
ao longo desse tempo ela lava a calcinha
molhada de sêmen. e ao lavá-la gosta de pensar que, em vez de descer com a água pelo ralo – o sêmen, como o álcool, se volatiliza, dissipando-se com as gotículas de vapor do ambiente
enquanto toma banho, respira fundo, fundo – sentindo como se o homem que há pouco penetrou seu sexo estivesse agora penetrando seu pulmão
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em seguida, com a toalha enrolada no cabelo, como um animal inaudito – uma espécie mítica, meio mulher / meio rinoceronte (a toalha enrolada como um corno imenso no centro da cabeça) –
sai no quintal. pega um prendedor da cestinha – e, de pés descalços, ainda morna
e predatória, pendura a calcinha no varal
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vale lembrar que no interior as calcinhas pernoitam e amanhecem nos varais – e as mulheres recolhem-nas perto do meio-dia, depois do período do vapor. e vestem-nas. e passam a tarde com elas –
e é por isso que à noite, amando-as, os homens dizem que seus grandes lábios cheiram a cerração
nessas manhãs o sol se abre aos poucos – e com seus cabelos volumosos, ondulados, as mulheres então mimetizam em menor escala a cena da travessia da claridade nas copas das árvores
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a cerração imanta os quartos, imanta os móveis e as cortinas; e os mortos participam desse processo todo, no espaço; em silêncio
de fora, a certa distância, a casa nessas manhãs mal pode ser vista. o contorno dos telhados e das chaminés se perde
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na casa fabula-se outra casa – em ruínas
[em: caderno das vindimas, início de narrativa maior (em trabalho)]
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sou uma cidade submersa
quando à noite me deito contigo e te amo com todos os meus abismos –
pela manhã sou uma cidade submersa
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porque é assim que te amo, lendária e triste. porque não posso senão te amar com o que em meu corpo é a história do fim de uma linhagem, estéril como sou
e, então, quando pela manhã tu vais e eu permaneço na cama, nua
quando pela manhã a luz do sol começa a entrar pela janela e preenche o quarto
nessa hora o sal se reacende e cintila em minhas coxas
e eu, estéril – eu então sou uma mulher estéril repleta de estrelas, de constelações
[em: caderno dos fins, 2018/19, parte I]
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ama-me em cada vestígio
os cabelos que caem
o sangue descendo do meu sexo todo mês
ama-me a sombra
a boca descamando no frio de julho
esse corpo que perco do meu corpo
as águas que se vão de mim
ama-me como se mesmo meu choro fosse precioso
como se valesse mais que ouro
a lágrima, a partícula de sal retida
à ponta do meu cílio
[em: caderno dos fins, (vendo onde encaixar: se parte V ou VI); 2019]
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as mulheres são todas iguais
deixarás uma em busca de outra, crerás na promessa de vida nova, ao lado dela – a única
mas as mulheres são todas iguais
cedo ou tarde verás em mim a melancolia da raquel
a mesma paixão triste pelo inconsútil
cedo ou tarde entenderás que – como a roberta – não tenho onde pousar as mãos em dias como este domingo
e que através da luana também canto aos quatro ventos
“eu, mulher, monstro do meu desejo, cadela cabalística, a carta má dos tarôs da morte (…)”
(…)
são iguais as mulheres
onde encontrarás uma encontrarás todas
quantas me acompanham
nesta cidade em ruínas onde sigo só? à janela de uma das poucas casas que sobraram
me observas – sentada de lado, no largo parapeito; penso em nydia
em ana
em samantha – penso que estou vestida de preto, ouvindo os sinos ao longe
à espera de um deus
ou de uma menina morta para beijar as mãos
–
eu, que só acredito no que dizem quando o que dizem traz algo das lendas do animal nascido
da sombra
de um jarro intocado
–
onde amares uma mulher terás de amar todas
uma, se odiares – odiarás uma legião
somos em certo sentido como a ave; suspensas no ar, num só corpo: “frágil e forte – o mundo inteiro / depende / do pulsar cardíaco / do pássaro”
à voz da adriane
–
pesquisas mostram que os ciclos de sangue de mulheres que moram juntas tornam-se sincrônicos
o que não mostram pesquisas – que sincrônicos passam a ser também nossos sonhos
em sonho, a pronúncia do meu nome é mais vaga, um balbucio
bem poderias confundi-lo com
o da maiara
marieli, marceli – no escuro, antes que se rompa o fio de prata
–
não te deste conta
porque o diabo mora nos detalhes: às nossas costas vingam as mesmas pintas
amanda, farrah
as mesmas linhas marcam nas omoplatas os domínios de uma espécie de constelação
–
pensemos em ted hughes, por exemplo:
depois de se separar de sylvia plath, ele se casou com assia wevil
sylvia se suicidou com gás de cozinha
assia fez o mesmo alguns anos mais tarde
o mesmo ato
o mesmo gás
o mesmo homem
as mulheres são todas iguais
–
que eu não tenha decepado a tua cabeça, servindo-a na bandeja, como salomé: é questão de acaso
que eu não tenha te envenenado com a cantarella, como lucrécia borgia: é questão de acaso
que não me tenhas chamado de beatriz
que não tenhas morrido e renascido mil vezes no meu gozo
(…)
à noite te deitarás com ela
e nela serão todas
e qualquer uma
os mesmos casos perdidos
as mesmas mulheres sentadas no meio-fio da esquina onde a menina de isabela faz ponto
as mesmas freiras da ordem do carmelo
as mesmas tipas fazendo aborto
clandestinamente
as mesmas velhas à espera de não se sabe o que, olhando pela janela
–
porque numa somos todas
repetíveis, labirínticas
espelhos
espectros umas das outras
–
de madrugada ela te seduzirá com beijos e cheiros
e quando descobrires que é a mesma mulher de sempre
o mesmo antigo demônio fêmeo
nessa hora será tarde. já a terás fecundado
iniciado uma linhagem má
fundado uma nação
[em: caderno em feitura, série em trabalho.
nas sequências devo seguir com as menções às poética se femininas]
* este texto faz menção à poética de raquel gaio, de roberta tostes daniel,
de nydia bonetti, de samantha abreu, de ana peluso, de isabela penov,
de luana muniz, de ana farrah, de amanda vital, de adriane garcia
e de maiara gouveia. há em alguns casos menções a expressões usadas
por essas poetas em seus textos. o primeiro trecho entre
aspas foi escrito por luana muniz; o segundo, por adriane garcia
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I
ela caminha pelo corredor da casa
fecha as cortinas da sala
dos quartos
a palavra está na sua boca
a palavra, na língua
dissolvendo-se como uma hóstia
II
entre as meninas há aquelas que são especialmente silenciosas
dormem junto com suas bonecas
antes de apagarem a luz do abajur olham-nas longamente
inclinam-se para beijá-las, cercando seus corpinhos de pano com relâmpagos
–
são muitas, as meninas
e cheiram a algodão e lágrima
nos cabelos, um nevoeiro de teias de aranha. na pele, os sinais das luas, do eclipse. a sombra no púbis, no umbigo
o sono nos lábios entreabertos. uma mesma noite atravessa os anos pela boca das mães até a boca das meninas
e da boca das meninas até a boca das bonecas
num ciclo de perpetuação
da fome
[…]
V
tem mãos enormes, minha mãe
e eu ainda na infância compreendi que são mãos enormes e delicadas – como as mãos de todo monstro
minha mãe monstruosa como a noite
angélica como toda mulher à beira da cama, cantando palavras num dialeto que já ninguém domina
estabelecendo a seu modo a fronteira entre a voz e o sonho
entre as cortinas e a margem das folhas
pondo a mesa para os mortos da casa
enchendo as taças
minha mãe, que perdeu sua mãe quando ainda era menina
e que por isso também teve de nascer outra vez ao dar à luz
criar outra vez o mundo, dividir os dias e as noites
separar o céu e o mar
–
tanto ela caminhou para que crescesse nos seus cabelos o fruto da delicadeza
para se permitir chorar até que as lágrimas dissolvessem
no meu corpo de filha
o seu corpo de filha
[em: caderno das meninas, 2019]
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(Fotografia de Cecília Camargo)
Carlos Eduardo Leal
Adoro as poesias de Mar Becker. A força de seu lirismo convulsiona almas desavisadas como a minha. Excelente a ideia de publicá-la para ser lida por mais e mais pessoas.
Guilherme Gomes
A poesia de marceli Andressa Becker é sublime. Tem um pudor pagão quase atrevido, mesmo contido. Parabéns ao ruído pela oportunidade dada e PRINCIpalmente louros à AUTORa.