Cinco poemas de Angela Zanirato
Angela Zanirato é professora de História, pós-graduada pela UNESP de Assis e pela UEM, Maringá. Participou do Mapa Cultural Paulista versão 2015/ 2016, em que foi classificada para a fase final na modalidade conto. Participa da Associação de Escritores e Poetas de Paraguaçu Paulista- APEP. Tem poemas publicados em três Antologias: Um olhar Sobre, coletânea da APEP, em 2014; Filhas de Maria e Valentim, 2015; e Um Olhar Sobre, coletânea da APEP, em 2017. Possui poemas publicados nos sites: Blocos Online, Parol, Movimiento Poetas del Mundo, Antologia do Mapa Cultural Paulista, edição 2015/2016, versão ebook, Revista de Ouro, Revista Ver–O-Poema, Revista Portuguesa InComunidade, Mallarmargens e Revista Digital Literatura e Fechadura.
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Protocolo
Tenho alguns comprimidos uma faca e depressão crônica
Para não morrer escondo tudo de mim
E rio
Para não morrer evito aguas fundas janelas do quinto andar
Cordas cintos e soda cáustica
Para não morrer não leio Sylvia Plath, Ana Cristina César Anne Sexton ou Florbela Espanca
Não carrego pedras no bolso quando observo o mar
Não acendo forno
Não carrego estiletes
Para não morrer ouço rock alemão
Tento desenhar a sobrancelha de Nina Hagen
Teço poemas de manhã e desfaço à noite
Para não morrer crio elos e conexões com olhos alheios
Para não morrer tenho com/paixão de mim
E engendro álibis com meus espelhos
Viver é a anti-mágica,
*
Meu cid 10 é F44
a poesia está em alta
os tarjas pretas e as cervejas
estão em alta
a tristeza está em alta
o muro que me separa de mim também é alto
sou poeta de uma pequena cidade
minha escrita brota da falta de comunhão
com possíveis ecos
os sons de minha cidade são baixos
não há êxtase
eu preciso do êxtase para fazer um poema
preciso de palavras altas furiosas
palavras fêmeas
lispectorianas
hilstinianas
palavras fome
carolinas com jesus
palavras do asfalto
impraticáveis
quem lucra com a poesia em alta?
a ong mães da Sé?
o guerrilla girls?
ou
o mercado financeiro?
o índice dow Jones?
a bolsa de NY?
a indústria farmacêutica?
a Ambev?
ainda bem que moro em uma pequena cidade
e ninguém lucra com meus escritos
então volto a falar das palavras impraticáveis
o beijo de língua
a mordida na maçã do rosto
os homens e mulheres impraticáveis porque proibidos
proibidos por quê?
pelo transbordamento das emoções que escorrem pelas ruas
e findam num fétido bueiro junto com espermas e baratas
o barato do álcool com energético é igual ao lança perfume
que é igual a duas gotas de Chanel n.5
o fumo impraticável
tão impraticável que é apagado com os dedos
o não-beijo e a língua morta
assim como o rio que circunda minha cidade
minha cidade morta
em baixa
assim como minha poesia
nessa noite de altos e baixos
meu cid 10 é f44
sou mulher
estou doente
assim como minha pátria
.
mas eu ainda posso chorar.
*
Misericordiosa
Amar do gato as pulgas
os arranhões no braço o miado do cio a toxoplasmose
Amar do cachorro o carrapato os dentes sujos a baba o latido noturno a cinomose
Amar da chuva a tempestade os trovões os raios o vendaval a hepatite a lama
Amar da mulher a menstruação as cólicas as tpms a menopausa as rugas a flacidez o pelo nas axilas amar a frigidez e a libido elevada
Amar do homem o gosto pela novinha a paixão pelo futebol o boteco de cada dia a ausência presente o medo do exame de próstata
Amar dos poetas a loucura a contradição a exposição da alma o confessional o erótico o pornográfico a ausência e a presença do amor nos versos
e
Amar das palavras o pus o sangue a mosca o corvo
a faca a vagina . Amar a porra toda.
*
Protesto
Sobre o poema dormem doentes
Rios de lama
Marianas
Bailes funk
Balas perdidas
Ninho do urubu
Ágathas
80 tiros na musica
Meninas vestem rosa
Meninos vestem azul
Óleo nas praias
Porte de armas
Vírus
Bactérias
Sangue
Pús
Sob o poema dormem capachos
Verde-amarelo
Bandeiras
Continências
Histerias
Coturnos
Salmão
Caviar
Romanée Conti Grand Cru
Sob o poema desfile de dândis
Dentes de porcelana
partos agendados
Apliques platinados
Longas unhas em gel
Bolsa Prada
IPhone 5S
Propaganda de margarina
Buque de flores artificiais
Sob o poema reaças vociferam
não há revolução
Não há pandemia
O Messias renasceu
O mito óh mito!
Omite
Sob o poema
A lavagem de porcos de fraque e cartola
Sob o poema
Discurso encerrado
Protesto em branco.
*
Iluminada
Houve um tempo que desisti de mim. Parei de existir. As fotos não captavam meu rosto. Era uma boneca de pano com cabelo de milho e alma humana. Foi nesse processo que iluminei a minha alma.
O processo de iluminar a alma começou de fora para dentro. O começo da iluminação se deu com os vaga-lumes. Não tanto pelo brilho, mas pela observação. Pelo toque. O brilho ficava nas sainhas ou blusinhas onde me imaginava artista de circo.
Toda mocinha sonhava em ir embora com o circo. Deixar aquela terra roxa para trás, deixar o poço, o balde do banho e a temida privada de buraco. Já não éramos como nossos pais. Deixar a sina era preciso. Nem que fosse na intenção.
O trapézio me fascinava! Viver nas alturas, desafiar a morte ! O pé de manga foi minha primeira experiência . Fiquei de ponta cabeça, soltei os braços. As pernas no galho seguravam o corpo enquanto me inflava de coragem.
Coragem. Foi isso que alimentou uma geração de mulheres. Como a da minha mãe. Parir, lavar ,cozinhar, passar. O poço, o poço o poço…A vida no fundo do poço. De alguma forma, foram artistas. Às vezes me pego pensando na criatividade da minha mãe. Boneca de espiga de milho de presente. Eu amava a boneca. Talvez por isso quis ser uma quando desisti de mim. A boneca era a coragem de minha mãe. Ser artista no sertão exigia clarividência sobre o destino. As mulheres tinham consciência da sorte a elas reservada.
Eu não queria aquele destino. O sertão era uma ferida purulenta. Nunca sarava. O fatalismo daquelas mulheres não era o meu. Quando pensei que devia cumprir sina ,fugi para dentro de mim. Eu me escondia de mim mesma. Fiz protestos internos no processo de desistência . Fui mansa para ser desassossegada. Tinha por índole um desassossego que eu sufocava e desconhecia.
Cresci . O vestido de boneca não cabia mais em mim. Nem minha alma me comportava . Ela estava iluminada como o vagalume, como os olhos da boneca de milho, como a roupa do circo. Com meus voos no pé de manga. Minha alma clarificou meu corpo.
Claudmar Gonçalves Costa
Poemas de Zanirat: viScerais