Cinco poemas de Bruno Ramalho de Carvalho
Bruno Ramalho de Carvalho é médico ginecologista e atua na área da reprodução humana. Tem uma mania antiga de escrever versos, que já lhe renderam a publicação de a penúltima coisa que se faz (uma produção independente, em 1999), do amor deveras e das quimeras (EMOOBY, 2011) e livra-me, poesia (Scortecci, 2019). Nas horas vagas, dedica-se a tocar trompete e estudar filosofia.
Os poemas abaixo fazem parte do livro livra-me, poesia, Editora Scortecci, 2019.
***
chão no céu (diálogo com vítor ramil)
fosse chão sob a voz,
não bastaria à poesia
o espaço permitido a voar,
pois andar sobre o chão
apenas deixa que ao verso
seja permitido pouco avançar…
quando o céu sobre mim
quase oferece o infinito,
é tão bonito que a poesia é pra já!
e, se o chão é o céu,
da mesma forma é bonito
ver o verso a esquecer de pisar…
fosse vão sob a voz,
assim seria a poesia
o espaço do infinito a alcançar,
pois andar sobre o não
deveras mostra que ao verso
é permitido muito mais que rimar…
pois que o céu sobre mim
sempre oferece o que é bonito,
é tão aflito se poesia não dá…
mas, se o chão é o céu,
já me conforta que o infinito
esteja sempre para o verso como está…
*
certezas
todo mundo tem certezas.
exatas e equivocadas,
temporárias e insistentes,
inertes e rebeldes…
certezas podem ser sãs e doentes.
as certezas, geralmente,
são meninas de boa aparência
e, ainda, convenientes…
certezas-mecanismo-de-defesa são frequentes,
certezas-mentira são ferramentas cotidianas,
certezas-fé são pra sobrevivência
e as certezas-de-certeza, levianas…
certezas, enfim, são o que lhes convém.
deve-se cuidar pra não ferir, contudo,
com novas certezas as que já se tem…
acertar nas certezas pode ser
errar nas possibilidades…
pois, se no dicionário,
certeza é a qualidade do certo,
fica a pergunta em aberto:
certo pra quem?
*
uma brecha de amor
curtindo a solidão reincidente
e a frieza de uma sala sem janelas,
acabo atendo-me à beleza dos batentes,
de soleiras, piso, teto, arandelas…
e em meio a tudo isso o que me envasa,
construo um mundo findo no infinito
do que pode existir de mais bonito,
das ilusões que tenho aqui em casa…
o que pode, a princípio ser loucura,
amar tão sem limites coisas mortas,
bem menos é que se ater às vivas tortas
do dia-a-dia, em que não há ternura.
assim, em meio a toda essa folia,
abstenho-me de mim e das faculdades
e entrego-me fiel à fantasia
para deleitar-me das poeticidades.
num surto de paixão inanimado
abstrai-se do real o verso alerta,
e ama, agora, o libertino compensado
da porta da rua, que jaz entreaberta.
*
prestam-se a toda graça,
como a todo granizo,
sempre e em qualquer praça,
a reza, a queixa e o riso.
*
sempre alguém (diálogo com carlos ferriani)
o poeta é vazio sem vãos;
sem lacunas, não está preenchido.
e a poesia não sente a contradição:
acha-se bem no que está escondido.
acha-se tão bem que o verso perdido
não teme jamais não ser encontrado:
sabe-se muito bem localizado
no peito de quem o procura.
e é lá que se embebe da ternura
que tanto forja o poeta calado,
que é pranto quando o que sente é fado
e manto quando o frio é sentido.
encher-se de nada preenche,
esvaziar-se também.
sorte de quem versa cheio de vazio:
sozinho ou não, terá sempre alguém.
bruno ramalho
Meu agradecimento à ruído manifesto pela publicação desses cinco poemas. Abraços!