Quatro poemas e um conto de Camila Cecílio
Camila Cecílio é jornalista e escrevedora das coisas de dentro da gente. Cuiabana perdida em São Paulo, vive entre a capital e o mato em busca de mistérios.
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Diluída
uma vontade grande de ser diluída
feito pó de café quando encontra a água
em fervura
e, ao invés de ser mexida com uma colher, queria ser
espalhada em pequenas porções
ser misturada à poeira
uma vontade grande de virar vento ou
qualquer coisa que passa ligeiro para
no segundo seguinte, transmutar
ir de um lugar a outro sendo não o que era
mas um sentido em gestação
um não sei o quê a ser parido
um espaço vazio entre o antes
e o depois
um momento oco, sem luz
ou ruído
queria ser derretida em fogo alto
ou dissolvida em gotículas de uma chuva
torrencial
em todo caso seria eu em fragmentos
pedaços finitos deixados à deriva
do seu próprio existir até colidir
com pedaços do existir de outro ser
afinal, não estamos todos à deriva
de nós mesmos?
Vó
puxou a cadeira, se sentou
do meu lado e perguntou
como é que tá a vida
lá no centro do país
eu disse não sei
ela e os olhinhos arregalados
de tanto enxergar
queriam me ver falar
tá tudo bem
mesmo sem estar
então me mostra as flores
que desabrocharam ontem
depois dos meses
eu sei, vó
que na parede da tua casa
o tempo é outro
a televisão no noticiário
o ventilador posto de canto
o café no coador
a cadeira de balanço repousa sozinha
até alguém chegar e te azucrinar
vó, tem pão?
ela diz tem, mas
não faz sujeira que eu acabei de limpar
eu digo nada pra não atrapalhar
o pensamento dela diante da janela da cozinha
atravessa o meu
é daí que a senhora vê a vida, vó?
ali fora tem um jardim que você plantou
nasci de lá, parida pelo teu amor multiplicado
é tua feição que me leva
onde longe é um lugar
perto da casa do poeta Belchior
é o teu sangue o meu sertão
chão que nunca pisei
ainda assim, passa por mim
são teus braços que arrodeiam
aqueles que vieram depois de ti
são tuas mãos que acariciam
tudo aquilo que floriu
e carregam ainda a lembrança do cabo da enxada
que puxou tão menina e depois
moça e senhora de tua estrada de terra
feita bonita por causa e coisa de sol
o caminho que te levou embora
na boleia do caminhão
teus olhos foram grandes
como hoje os meus são
viram o que eu nem sei
é tanta coisa país afora
e dentro de ti a fé que eu acho
nunca vou ter
sabe, vó
te olhando assim
paro pra entender
tenho mais de você em mim
do que consigo imaginar
quando eu chegar aí
na idade que te faz doer as pernas
e de si mesma não sentir pena
eu vou lembrar
da mulher mais bonita e destemida
que sempre foi e é você
a nordestina que me ensinou a lutar
Ei, tempo, toma o chá
aqui estou, onde tudo começou
não sei quando, me perdi
o lugar de partida
tantos pedaços de mim
não sei quantos, perdi as contas
da matemática só sei a palavra
eu, você, os outros
eu em ti, tu em mim
nós e todos
reverberando no rastro do silêncio
esparramando na brecha das horas
deixo abrir a porta pro tempo
aqui onde estou, não sei o tanto
ei, tempo, te acho tão bacana
com esse cabelo cinzento
entra, tempo, toma o chá
fiz pra ti, tão quentinho
enquanto contava as marcas no meu rosto
esparrama o véu que tu carregas
nas ancas do teu mistério
desculpa, tempo
se esqueci o que é plural e singular
se esqueci de ti, senhor de tantas rugas
a primeira vez que te vi
tão pequenininha eu era
cabia na palma da tua mão sem fim
e reluzia no teu olhar estratosférico
aí eu cresci e me perdi
nesses estados atmosféricos
calor em Mato Grosso
neve no velho continente
em São Paulo o frio
é de fazer bater os dentes
cada dia brota em mim
uma planta diferente
o clima ajuda
não a previsão
da segurança, o cinto do avião
da constância, arroz com feijão
do medo, vastidão
do destino, imensidão
fico aqui onde estou
no desassossego que tudo
termina e começa
sempre, mais uma vez
Febre é teu nome
tenho febre
e é teu nome que arde
no meu rosto
queima nesses olhos
murchos de melancolia
os panos deixados
nos cantos da casa
nossa!
eram nossas mãos
refeitas do que nos
comovia
a fogueira dos dias
deixados para trás
tenho febre
e nas partes
de todo o corpo
termômetro nenhum
mede a ausência
do teu espírito
esquentando as dores
que permeiam o
invisível de mim
a quentura da memória
aos poucos, destruindo
a frieza da matéria
é o que ainda
de certa forma
aquece o peito
fechado
pra qualquer sopro
tenho febre
e, diz quem sabe
alguma coisa está
tão errada
no meu organismo
agredido
por agente externo
é o efeito sonoro
do teu nome
meu delírio
inconsciente
Deus, deus
oi, deus. oi, Deus.
nunca sei se seu nome começa com letra minúscula ou maiúscula, mas há tantas coisas que não sei sobre ti que a representação escrita da palavra pouco importa ao eco de tua imensidão. deus (Deus!), quando eu era só um pedacinho de menina me fizeram acreditar numa versão de você que, depois que eu cresci e continuei a ser pequena, desmanchou o sentido. comecei então a te procurar no que era comum. me disseram que você tinha uma barba tão branca que se confundia com a neve no alto das montanhas, tão comprida que se misturava às nuvens sobre nossas cabeças. me falaram que suas mãos eram tão macias que faziam a terra seca escorrer por entre seus dedos, e que seus olhos eram tão vivos como as lavas de um vulcão em erupção. acontece, deus, que outro dia eu te vi e não era nada do que me contaram quando eu era criança. você não tinha uma banda de anjos tocadores de harpa, tampouco se apresentava como rei. você, deus, era o abraço entre dois meninos de rua. você era o puro ato de envolver os braços em torno do coração de alguém. e, caramba, deus, você espremeu meus olhos como eu faço com meus limões na tentativa desastrada de fazer da vida uma limonada. não sou boa nisso, mas suspeito estar ficando boa em te ver onde menos esperam que você apareça. outro dia te vi brotar da terra do vaso que tenho em casa. você, deus, era a mudinha da planta mais frágil do jardim que cultivo na minha sala. assim como te vejo, te leio, te ouço. vejo tua face simpática no bater das asas de um beija-flor. leio tuas linhas tortas nas ruas por onde vão meus pés. me acolho, me recolho, me volto pra mim e aqui está você, na lágrima que mora no canto esquerdo do meu olhar. grito, mas é a voz de deus que ressoa, sobrepondo-se a minha e entrando em cada dúvida que habita no ato de pensar. sabe, deus, quando eu for embora vou rezar pra te ver chegar no primeiro raio de sol, te ver queimar minha pele numa manhã deitada na grama. pra depois, enfim, partir e seguir em busca de ti, deus, Deus.