Cinco poemas de Catita
“Mulher, negra, professora, ‘escrivinhadora’, paulistana, filha, tia, amiga, amante… Mais da prosa, com poemas que vingam. Escrevo porque me dói, escrevo porque me sereniza”. Assim se define a escritora Catita, autora de croniquetas, contitos, fabuletas e poemetos que nascem do seu cotidiano e dos sentimentos do seu mundo imaginário. São esses gêneros que aparecem intercalados em Morada, seu primeiro livro, lançado pelo selo Dandaras da editora Feminas. Invocando mulheres como Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Mari Vieira e Marli de Fátima Aguiar, a obra se divide em quatro partes: Paredes, Janelas, Portas e Teto.
Na primeira parte, a poeta se pergunta: as paredes protegem ou prendem? Talvez não sirvam para proteção, já que Catita percebe que os monstros não são mais sem cabeça, de uma perna só e nem têm a cara preta – em vez disso, apenas dizem: “você não vai conseguir”. Também não protegem do choro que irrompe de repente, e essa parede a poeta faz questão de derrubar. Ao dedicar quatro poemas a esse tema, ela nos lembra que mulher negra também chora. Não são fortes, nem resilientes o tempo todo, como o racismo nos fez acreditar (Chorar alivia/Tira o peso dos ombros/Afrouxa o aperto da alma/Abre o peito). Na segunda parte, Janelas, olha a vida lá fora, indomável e sedutora (A vida me toma e me basta), mas também cruel (Tudo Negro: Em prisão/Em humilhação/Na surra/Na morte). Pelo buraco na parede enxerga um mundo de possibilidades para si (Aprendi a roer. E roí/placa-limite-coleira-pés-chibatas) e se recusa a se encaixar nas expectativas dos outros sobre ela (O primeiro poema brotou em mim/Rompendo cada um dos sete palmos/De não./E eu fui e sou/Quem eu quero ser). Em Portas, traz as lembranças da infância, das memórias familiares e dirige a palavra a pessoas queridas do passado e do presente: enfermos e mortos, apaixonados e felicitados. À preta velha Tina, à irmã, ao pai, a Marielle Franco, a Ingrid Martins e ao seu grande companheiro felino, Jean Pierre. Na última parte do livro, Teto, celebra suas paixões e o amor entre mulheres negras (Na anatomia que recriamos/Tesoura/Dedos de valsa a samba/Vulvas úmidas/Quentes/Língua dentro-fora).
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Meu céu
Um céu hoje sem estrelas
Sem luar
Sem romance
Um céu hoje com nuvens
Com chuva
Com pesar
Mas o estranho calor desse céu
Fechado, sem luz, mudo,
Insinua ser meu
E, por mim engolido,
Me consome.
*
Meu melhor sorriso
Hoje saí de casa sem meu melhor sorriso
Não foi perda
Ele estava na gaveta
No lugar de sempre
Depois do natural, entre o meia boca e o social
Hoje saí de casa sem meu melhor sorriso
Não foi esquecimento
O bilhete amarelado
Imóvel ao lado da cama
É garantia de memória
Hoje saí de casa sem meu melhor sorriso
Não foi defeito
O mergulho noturno
No composto de motivação e alegria
Triplicou seu brilho
Hoje saí de casa sem meu melhor sorriso
Não foi luto
O pai ama a nora
O gato ronrona com o sobrinho
O câncer não venceu a amiga
Hoje saí de casa sem meu melhor sorriso
Não foi desesperança
A justiça tarda, mas não falha
A fé remove montanhas
Quem espera sempre alcança
Hoje saí de casa sem meu melhor sorriso
Não foi o zodíaco,
A cartomante,
A preta velha,
O pastor.
Hoje saí de casa sem meu melhor sorriso
Não foi o trabalho,
O estudo,
O trânsito,
O cansaço.
Hoje meu melhor sorriso não me coube.
*
Choro vicioso
Para uns, desequilíbrio
Para outros, sensibilidade
Para mim, nada de rótulos:
Só preciso dizer que chorei hoje.
Chorei quando a chuva caiu
Chorei junto com a chuva
O porquê não me veio
Ou umedeceu meu crespo
Escorreu
Não pude segurar.
Há tempos não entendo.
Ou entendo.
Por isso eu choro?
E chorar é ceder?
É ser fraca?
Engolir o choro queima
Estrangula a alma.
Quando o choro finda,
Me sinto mais forte.
Mentira, fico puta.
*
Eu flor
Para LB e KS
Cor e perfume
Delicadeza ou exuberância
Nos cantos
Nos vasos
Nos campos
Rara, cara
Barata, comum
Para os enfermos e mortos
Para os apaixonados e felicitados
Morte certa.
Sem antes mostrar a que vim.
*
Todas poetas
Pode uma poeta não ter vivido isso,
mas sentir como se o fora
Pode outra poeta ter vivido aquilo,
mas negar para não a aborrecerem.
Pode a poeta querer socar o seu nariz,
mas atirar-lhe a palavra.
Pode qualquer poeta usar um palavrão dos grandes
Ela quer, ela pode.
Pode a poeta chorar ao voltar andarilha
sem ter vendido um livrim
que virasse leite de sua cria
Tal Carolina, sem papel-ferro pra catar,
com desejo de morrer,
não sem antes escrever
– Então, entenda o punho erguido da poeta
Leiouça a poeta
Reflita sobre suas palavras
Receba seus silêncios
Publique seus livros
Compre seus livros, poemas
ímãs de geladeira, brigadeiros, brincos
Não faça mimimi de seus imperativos
Respeite a arte, que é o trabalho dela
mas nunca deleite, desvario ou ilusão
Antes urgência.
Urgência de mulher é dor crônica no mundo.