Cinco poemas de Cláudia Araújo
Cláudia Araújo é mãe, psicóloga e poeta, desde o século passado.
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educação
come fígado
tem ferro
come fígado
faz bem
come fígado
é o que tem
come fígado
espreme um limão
deixa branco de sal
e daí a sede depois?
e daí que textura esponjosa te embrulha o estômago?
e daí que o cheiro te paralisa na porta da cozinha?
e daí que a cor te lembra putrefação ?
tapa o nariz
engole sem mastigar
anda logo
faz bem
***
mulher
caiba
corte
encolha
acolha
seja o fermento da massa
seja o colo do mundo
desbote
apague
esmaeça
perfume
seja para o outro
não seja um Outro
cale
confine
contenha
fique
quieta
junto
***
para Adélia e Cecília
gênero é uma cela
Adélia quer visitar a cela ao lado.
nas fibras do seu inconsciente
ainda é a donzela
a desgraça do sagrado feminino
pinta de dourado as grades
no meu lugar na cela
quase fico em pé.
me arrasto sobre os corpos das outras
quanto mais retintas
menos espaço
meu companheiro
dança na cela ao lado
não entende porque eu mastigo as grades
***
sábado
mulherzinha quando cresce
recolhe roupa pelo chão
tem saudade da menininha
que não tinha obrigação
lá se vão os meus versos diluídos no amaciante
o sol, leão metafórico
agora é instrumento doméstico
pobre sol acoplado às necessidades da lavanderia
a chuva amiga e boa
tempestade e torvelinho
hoje só estorvo
menininha faz versos
num tempo roubado,
interrompido pelo aviso sonoro
supostamente gentil
da máquina de lavar
sei que ela me olha com seus olhos eletrônicos
sua boca espumando
Sei que ela ri de mim
Eu sei
***
nutricionista
comida é mordaça
a palavra armada na boca
espia entre dentes
há coturnos lá fora
o pão me socorre
a manteiga unta a palavra
ela escorrega de volta
desce pela garganta
cala a boca e come
come
come pra calar a boca
que o feijão preencha os espaços
destinados à construção de mundos
encha a boca,
as palavras não podem escapar
se as palavras escaparem
é o fim desse mundo