Cinco poemas de Daniella Araújo
Daniella Araújo, de Leopoldina, interior de Minas, vive atualmente em Sete Lagoas. É poeta desde menina, produziu de forma independente o primeiro livro Conto de um amor intermitente, em 2017. Trabalha na defesa da saúde pública há 30 anos, espaço onde está implementando o projeto Saúde e Literatura: a literatura como alento. Administra a página PoeticeAguda.
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Cordel
por mulheres muito antigas
sou feita
(e refeita) a cada dia
faço política e poesia
e também geleia
e também orgia
diversa é meu sobrenome
ou diverso meu nome
uma avó muito antiga
de sete gerações havidas
sussurra em meu ouvido
como ventania
a outra cutuca com uma faca amolada :
vai mulher
anda
*
Ausências
mil e uma noites de ausência se passaram
os dias guarnecidos de espera e lentidão
por costume
eu caminhava pelas mesmas vias arborizadas,
eu almoçava e jantava,
em alheamento e vaga esperança
que te avistasse
por costume
eu esboçava sorrisos aos demais
ao jornaleiro, padeiro, zeladora do prédio
não imaginava extinto o mais tangível de nós
a fogueira dos pensamentos
a força ígnea dos corpos
as belezas imantadas que sonhávamos
feito dois meninos
por costume
eu esperava que chamasse meu nome
de novo e outra vez
e estendesse a mão
tão maior que a minha
eu esperava
como se a ruptura esgarçada de cada dia
fosse cerzindo o outro dia
como se cada noite fosse cerzindo a outra noite
que em sonho se sedimentava
mas a única resposta foi memória
e pedra
e pó.
*
A Intenção da rosa
depois que envelheci
não foi fácil imaginar
que sobre o cansaço de todas as coisas
sobre a desordem ordinária
das metrópoles solitárias
sobre a Síria, o Egito e mesmo a Venezuela
sobre a face dos assustados
ainda assim paira uma rosa
uma rosa florescida
a mesma de um extinto jardim
(eu era menina
e não sabia nada nada dos fins
eu aguardava sempre
noite após noite
a aurora).
*
Zeitgeist
na praça da Liberdade
os jovens andavam em círculos
olhando ao mesmo tempo seus celulares
(banal,você diria)
achei até bonito todos eles (e todas elas)
colunas cervicais sincronizadas
assim,
vez ou outra, os ipês rosas florescidos ali
surgiram no instagram
entre autorretratos e posts
e também o coreto,
o edifício Niemeyer
as fontes, as alamedas
a obra de Athos Bulcão no CCBB da praça
pessoas tão bonitas, cabelos indomados, calças rasgadíssimas,
todos, claro, fotografando uma tarde de sábado
na praça da Liberdade
eu que estive lá só para ver a floração dos ipês rosa
vi o espírito do tempo
meu filho enfatizava a palavra -em alemão-
Zeitgeist
mas eis que surge uma menininha em um patinete rosa
passando ligeira entre nós
e eu disse pra ele:
era esse o que Cidadão Kane sonhou em suas últimas cenas
“Rosebud”
a inocência de um botão de rosa?
não sei
não sabemos
mas poderia ser Liberdade.
*
Adolesci
um dia eu achei que desejo
fosse esse espanto no corpo
hoje acho desejo a coisa mais linda
quase impegável
mas linda
o que é perene?
lá fora eu sopro aquela flor que se despenteia
fico olhando com mil olhos
para onde ela vai
Ela vai, só disso sei.