Cinco poemas de Fabrício Valério
Fabrício Valério é editor, tradutor e escritor. Formado em Jornalismo pela PUC-SP, foi repórter na revista Forbes e no jornal Bom Dia Bauru. Atua no mercado de livros há mais de uma década. Passou pelas editoras Ateliê Editorial, Estação Liberdade e Ática. É gerente editorial na VR Editora. Entre suas traduções, destacam-se contos de Silvina Ocampo e de Ernesto Cardenal, além da obra infantil do cartunista argentino Liniers. Em 2016, publicou seu primeiro livro, A menina que parou o trânsito, com ilustrações de Bruna Assis Brasil. A obra infantil foi selecionada entre as 30 melhores pela revista Crescer em 2017. Vive em São Paulo.
***
:: Cafeteira italiana
Chama-se Sophia. Loren. Fica entre nós.
De manhã, coloco-a sobre fogo baixo
Mansamente. Mastroiannicamente.
Depois da água e do pó. Quedo ali, de pé
e só, diante da silhueta prateada. Examino
o busto de Madonna. Quero pousar minha
cabeça no vale de onde jorrará o leite e o mel
(o Vaticano que nos perdoe). Suporta calor.
Estoica: Ieri, oggi, domani. A saia rodada.
Quais outros mistérios estarão guardados ali?
Espartilha-se. Até que, entre resfôlegos vaporosos
(Habemus Papam!), pede que eu pare, trêmula,
olhos de mormaço. Desligo a chama
e sorvo sem pressa a essência de Sophia.
*
:: Quatro carnavais e o quinto
No primeiro ano choveu
e dançamos apertados
dentro de um boteco.
No segundo, ela ficou curiosa
a respeito de um quase amigo,
que há muito vivia sem visto
fora do país e apareceu sem avisar.
No terceiro, descansei as vistas
numa foliã fantasiada de brisa e suor.
No quarto, a tempestade afogou a cidade,
e a enxurrada levou a gente pra longe:
na sarjeta cheirando a mijo,
dois bolos de serpentina empapados.
No quinto ano não teve carnaval.
*
:: Nublada e quente
E se você saltasse da janela
num dia exato, depois de roer
sua própria tíbia por horas,
num átimo,
lacerado por um raio,
que o cindiu em duas partes:
uma, a mais adequada;
a outra, território arredio?
E se você voasse pela janela
num dia estático, desavisado,
desaviso prévio e calculado
talvez,
para fazer levitar blocos de terra
que levam presos às costas
os que terão de manter as solas
dos pés bem plantadas no chão?
E se você rebentasse em destroços,
como rebenta o vaso de violetas
que não pode resistir
aos afagos
de uma cortina encardida,
volteando ao vento
que antecede o temporal
numa manhã nublada e quente?
*
::
A árvore é bonita
e sei que em sua carne,
em seu sangue viscoso,
está a redenção de meus pecados,
dos pecados de toda a humanidade.
Mas meu coração futurista,
involuntariamente futurista,
ainda que leigo por natureza,
incapaz de alcançar zero e um,
oprimido por zero e um,
atomizado por zero e um,
acha bonita a engrenagem.
A máquina surda
e sua polpa de gosto ferroso.
Acha bonito o emaranhado de cabos,
sinfonia atonal azul e roxa,
tão mais bonito que as artérias
daquele que puxa a alavanca
e traduz o raio
para fazer viver o ex-homem,
a criatura de retalhos:
O homem depois do homem.
Meu coração pulsa o fogo abstrato,
a contragosto do rubro cérebro.
Não o fogo morto.
Não o fogo-fátuo.
Mas o feito-fogo.
O fogo das coisas sintéticas,
irrecicláveis.
O fogo transparente que não arde a pele,
em tudo diferente do sol na linha
do Equador.
O fogo que queima de modo intransigente,
limpo, inodoro,
toda a floresta.
*
:: Inventário
A parte que me cabe
não cabe em mim,
fração
do tempo despido
nas câmaras,
sobre as camas,
a história subterrânea
entretecida.
Me despejam
o grito que não estanca,
esfrego meu ouvido no chão,
no meio da sala de estar,
cão enlouquecido.
Os anciões riem.
Batem palmas.
Creem.
Ardo.