Cinco poemas de Fernanda Caleffi
Fernanda Caleffi Barbetta é jornalista e escritora. Publicou os romances Futuros Roubados e Passados Revelados, além da coletânea de contos 30 Textos para Descontrair. Neste ano de 2020 ela lança seu primeiro livro de poesias Já não me cabem as rimas. Alguns de seus textos também podem ser encontrados em antologias, como Luz de Natal, Sui Generis. Poesias Esquecidas, Casa Literária. Museu de Memórias, Carreira Literária, e Versos Inversos, Darda Editora. Em 2019, teve textos selecionados nos concursos VIP de Literatura, Concurso Beleza Simplicidade e Concurso Diário da Poesia.
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Transparente
O menino negro,
negro como a noite.
Mas era dia.
Os pés descalços
sobre o chão quadriculado,
preto e branco,
na mesma proporção.
Passantes,
em desigual proporção,
não o viam.
A noite,
negra como o menino,
chegou
e o engoliu.
Se ao menos ele sorrisse.
Na manhã seguinte,
o corpo negro esticado
sobre a areia,
negro como a noite,
mas era dia.
A areia a refletir
o sol forte,
quase alva,
o menino
negro,
quente,
quase frio,
a negritude
a mantê-lo
transparente.
Desejo
Postou-se ao meu lado,
a respiração acelerada,
ansiosa.
Desejava que eu lhe notasse
a presença,
que eu erguesse a cabeça
e lhe encarasse os olhos,
lhe fitasse os lábios.
Mas retive minha atenção aos seus sapatos,
que pouco a pouco
se afastaram,
deixando para trás
a respiração acelerada,
ansiosa,
que talvez fosse minha desde o início,
ignorando o desejo,
que talvez fosse meu,
de que me notasse e
me encarasse os olhos,
me fitasse os lábios.
Alma sufocada
Rasgaria o próprio peito
se seu sangue o alimentasse.
O leite, tão justo, conveniente,
não vinha,
não tinha.
O choro a entrar pelos ouvidos
e a estrangular-lhe a alma.
Gritos estridentes,
de mãos fortes, firmes,
a esmagar seu coração,
a sufocar sua esperança,
(espera seca, vazia).
Daria a própria vida,
se assim o salvasse.
Vidas que se dariam,
se perderiam,
sem que se desse nada
em troca.
Querência
A querência chega a assustar-me.
Constante.
Querência de afeto,
de saber,
de ter.
Querência de ser,
sem saber o que se quer.
Um insistente querer de doce.
Com o doce ainda na boca,
quero outro.
Querência de adoçar também
a mente,
pinçar lembranças,
enganar a memória.
Querência de gritar
o que penso,
de chorar
o que sinto.
De estar sempre em outro lugar.
O chato querer de fazer sentido,
de ter sempre nexo.
Uma querência do próprio querer,
para se querer sempre alguma coisa,
eternamente.
Em Claro
Mais uma noite em claro.
Apesar de toda escuridão,
no pequeno quarto
(e dentro de mim).
Revivo lembranças
esmaecidas pelo tempo,
turvadas pelas lágrimas.
Um reviver sem vida,
um remorrer,
um remoer.
Remoo velhas memórias,
no sôfrego girar da manivela,
moendo e remoendo.
No giro silencioso do corpo frio
sobre a cama quente,
moendo e remoendo.