Cinco poemas de Flávia Andrade
Flávia Andrade nasceu em São Paulo e é apaixonada pelas noites da cidade. Psicóloga, psicanalista e Mestre em Filosofia de formação, sente-se atraída desde cedo por arte, teatro e poesia. Quer colocar em verso aquilo que não pode ser racionalizado pelas vias formais do conhecimento e da compreensão humana. Faz da escrita seu caro divã. Não entende Hilda Hilst, Conceição Evaristo e Clarice Lispector com a razão, mas com os sentidos. Sente-se contemplada pelos sentimentos em letra dos grandes poetas e acredita que escrever poemas é condição de possibilidade da própria vida. É autora do livro A Cidade do tempo cão e outros poemas de fissuras, publicado pela Editora Patuá e do qual foram retirados os poemas a seguir.
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Cidade do tempo cão
O entardecer revela tua personalidade
E tua provocação
Borderline
Teus movimentos diurnos corridos e corriqueiros
Enlouquecedores e donos do tempo
Senhora do tempo e da masmorra
Da rotina desregulada e irregular
Provocativa e silenciadora
e tuas noites
Liberdades condicionadas
Possibilidades megalomaníacas
Contigo se tem romance bandido
Sexo selvagem com tua luxúria noturna
Com tua mania de grandeza
Muito templo
Pouco faraó
amanhece e você é só sadismo
Nos bate na cara
Segue a ambivalência
Amor e ódio
De dia te quero longe
De noite lembro porque não te deixo
Cidade do tempo cão
*
Carta ao cansaço
Quis escrever uma carta endereçada ao cansaço
ao sentido da dor do poeta fingido
o divã do verso nem sempre dá conta
porque a letra da angustia
certas vezes não encontra significante
Já que é assim
ficam os versos sensitivos do Leonard Cohen, sempre lacrimoso
falando por mim
Lembro do ciúmes de versos que me leram e não saíram dos meus dedos
Quis escrever para a fadiga
acreditar nos dotes de renascimento
da fênix que todo feminino conhece na carne
Mas não existe crença para aquele que chora
a única realidade
É o sal molhado da lágrima
a contração
o suspiro involuntário
o desgoverno
a tremedeira
o susto consigo
a pele própria estranha
quis escrever para a angustia porque a carta no correio
faria parecer fora
Que não me pertence o músculo que dói
mas é impossível a concomitância
entre destinatário e remetente
quis me cobrir
Mas a dor é o que nos iguala
E a poesia nos deixa nus
*
Grito
a ironia do buscar
Felicidade
Momento efêmero
Alegria passageira
Delírio, entorpecimento, fúria, euforia
A fúria e a paixão
Desrazão
O quão feliz se pode medir
Limiar da loucura e do estável
Entre aceitável e bizarro
Relativo e normativo
O sofrimento não
A melancolia não
O sofrimento humano, fácil, diário
A tristeza, paixão alcançável
Democrática emoção
Oposta à eufórica entorpecida e apaixonada alegria
Raciocina
Interroga
Angustia
Fere o normal e tira o eixo
Provoca e desacostuma
Derruba o hábito
Angústia, melancolia, sofrimento, lágrima
Façam calar-lhes o grito
Perigoso, herege, amoral
Grito
*
Origem
A lua prata que ilumina a noite preta
Redonda, cheia, reluzente
Lâmpada acesa no brilho do espelho d’água
Lâmpada tão acesa quanto o sol no azul fácil do dia
Sua luz, sua imensidão e sua falta de cobrança
Não pede resposta pela luz que dá
Nem o espelho pede retribuição pelo espetáculo que torna visível
O silêncio da noite, a brisa barulhenta e o silêncio ensurdecedor de tuas águas
O mistério encantador e sedutor de teu poder, tua majestade, teu império da natureza
Me seduz desde quando eu não sabia nomear teus encantos
Tenho necessidade de estar com teus barulhos calmantes
Hoje eu precisava estar com tuas espumas
Tua frieza molhada na noite prata da lua cheia
És meu maior encantamento
Soberana imensidão
Praia
Rica casa verde/negra/noite/azul
Morada de mãe Iemanjá
*
Construção
ser crônica é a marca da insatisfação
se ousadia é condição de possibilidade e realização
E mau humor é preguiça
o que acontece nesse intervalo daquilo que piso e abro
e não retorna, é pouco, é raso
para o cansaço de não ter sido?
tanta convicção
convictamente determinada
a chegar a um lugar que não existe
porque ainda não foi inventado
Espero tanto a chegada
Que nada que é concreto parece real
Agora
É preciso inventar um sentimento para definir e descrever o cansaço
De todos os dias buscar um não sei o que
Um veja-me e me diga quem sou
porque eu ainda não cheguei a existir
Ter sido é invenção da razão
Estar sendo é cansativo
Caminho
É verbo
E tijolo de si