Cinco poemas de Flávio de Araújo
Flávio de Araújo é filho de uma família de pescadores da Praia do Sono, comunidade caiçara situada em Paraty. Em 2008, publicou pelo Selo Off Flip seu livro de estreia (Zangareio), participando como autor convidado em diversos festivais no Brasil e exterior. Publicou o volume Poesias em edição especial da Oficina Paratiense de Gravura e tem no prelo Vermelho guelra (poesia) e O insustentável equilíbrio das perdas (romance). Tem poemas publicados em coletâneas, sites e revistas literárias, entre elas Germina, Washington Square Review, Jornal de Poesia e Revista Mānoa – Hawaii.
***
Aos meninos que voam
Não vejo graça nas asas do menino
que voou para bem alto das nuvens
foi sem nos dizer o menino que voa
como das nossas mãos se soltasse
um passarinho que para sempre voasse.
Não vejo graça nas asas do menino
que nos desce o céu inteiro
e lá de cima, tão longe da gente
chega a Deus primeiro.
Que graça têm as asas do menino?
Quem será que deu essas asas ao menino?
porque ele voa aonde o passarinho não alcança.
porque está onde o beija-flor não dança.
Não vejo graça nas asas do menino.
Graça nenhuma nas asas do menino
porque me tira choro dos olhos…
Mas sei que quando o menino voa
com as asas que eu nem acho graça
ele observa lá de cima
e acha tudo muito engraçado.
*
Lei da semeadura
Cedo, sob a presença do olhar capcioso de sua mulher
ele absorve todo ar possível para mais um dia ou menos.
Acena breve com um leve meneio do tórax.
Reproduz fadiga nos dedos das mãos
e em mais de meia-dúzia de membros.
Déjà vú dos oprimidos.
Se soubesse francês de escola pelo menos.
Se vê impossível de artes.
Distante léguas dos nutrientes da OMS.
Mas acólito.
Cruz banhada no pescoço enervado.
Cruz sem ninguém ao franzir sério a testa.
Se dizendo doador de órgãos brinca com suas tripas:
– Há de se ter serventia para essa cambada…
Para ele existem somente dois enigmas na terra dos viventes:
pescoço de girafa
e cigarro mentolado.
Perdeu suas opiniões na última eleição.
Avisaram-lhe.
Percebe-se mais magro.
– Mas quem fica pra semente?
Ignorando a lei da semeadura.
*
Bilhete sobre a cama
Eu vou
não me siga
eu creio na vida
tive felicidade
amores muito pouco.
Vou em silêncio
como quem não incomoda.
Vou sem rodeios
como o trem que não espera.
O que tive devolve
reparte
barganha.
O que fiz esqueça
relembre
perdoe.
O que fui diga aos outros
que tentei ser melhor.
Eu vou
não me siga
eu creio na vida
tive felicidade
amores muito pouco
cuida do cão.
Não se mate em saudades,
com você fica meu abraço
fica minha saliva em tua boca
o que sinto é que não posso ficar.
Eu vou
não me siga
eu creio na vida
tive felicidade
amores muito pouco
cuida do cão.
*
O Homem do Piano
Quem és tu
Homem do Piano?
Como foste parar perdido
na ilha britânica de Sheppey,
em Kent?
Que olhar perdido procura
nomes, coisas e lugares?
Que mãe aflita chora sobre as teclas
de um velho Steinwey?
Que Handel flui de teus dedos
fugidios
e qual canção dos náufragos
afoga-te o coração?
Quem és
Homem do Piano?
A que profundidade Lennon
o levou
no Yellow Submarine?
E esse rosto macilento
perpetrado em emblemas
seu terno Casablanca
marejado,
com que lembranças?
Quem és tu
Homem do Piano?
Como foste parar perdido
na ilha britânica de Sheppey,
em Kent?
*
Criança morta
[ao quadro de Cândido Portinari]
Fim cruel de toda pureza.
Ó fome no ventre dos homens.
Ó espinho nos pés das mulheres.
Criança que aqui brincava
de valente herói voador
e não brinca mais.
Para voar
na dimensão inalcançável
longe das moscas e monstros
que sempre derrotava.
Alva
mais alvas nuvens
esconda a criança
nesse esconde-esconde eterno.
Infância
poder dos homens.
Inimaginável crença de um mundo
que se mostra ingrato
com seus valentes.
Ó fome no ventre dos homens.
Ó espinho nos pés das mulheres.
Fim cruel dos heróis voadores.