Cinco poemas de Floriano Martins
Floriano Martins (1957). Poeta, editor, ensaísta, tradutor e artista plástico. Dirige a Agulha Revista de Cultura e o selo ARC Edições. Curador do projeto Atlas Lírico da América Hispânica, da revista Acrobata. Estes poemas integram o volume Antes que a árvore se feche, poesia completa (2020). Contato: floriano.agulha@gmail.com .
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Ironias obscenas
Elas se despediam dos verbos antes mesmo de conjugá-los.
E seguiam se divertindo, a alma atenta a novos préstimos.
Simulavam uma colheita abundante, tamanha prosperidade
e uma quantidade de chuvas na medida da própria sede.
Como sacerdotisas destinadas a lamber os ossos da fé,
elas eram inúmeras em cada porção de terra mastigada.
Seus bens não estavam previstos em um rateio de sacrifícios.
Nenhuma correspondência poderia julgá-las, ou ao menos
adaptá-las aos costumes mais selvagens da aventura humana.
Seus corpos se entretinham como uma fábula ao contrário.
Improvisavam gavetas e licores, no colo, na nuca, nos seios,
sem jamais tirar conclusão alguma dos maus hábitos do acaso.
Colavam cartazes nas ruas de um risco que não se pode fixar.
Um mundo sem reminiscências no olhar ou crises da razão.
*
Mares avulsos
Quando te vejo estás o mais alto possível.
O teu céu não se prende a fogo ou chuva.
Observo as tuas árvores dançando ao redor
das estações e o grito repetido dos pastores.
Quando te beijo estás rente aos meus lábios.
Ou ainda menor, para que eu me curve
e reconheça tuas vértebras a cada sussurro.
Quantas vezes fomos o osso consentido,
a trégua revelada e uma boa safra de grãos.
Quando te elejo o espelho emite pérolas
a todos os destinos onde possa me alcançar.
Eu amo as lágrimas que portam teus seios.
Eu rezo para que te vejas sempre outra.
E costuro o teu nome, que desconheço,
no travesseiro buliçoso de nossos reflexos.
*
Peripécias delirantes
Um dia eu deixo teus olhos riscarem um molde de meu corpo.
Como se fôssemos escalar as escarpas do horizonte ou subir
pelos invisíveis fios da escuridão que sopra em nosso quarto.
Um dia os teus olhos se confundem com as formas que não
distingo por entre as frestas da tábua corrida sob nossos pés.
A tua aura é uma lamparina repleta de símbolos e vogais,
pequenos insetos cuja disciplina veste a mobília de encanto.
As tuas proezas são improváveis e temperam os meus sonhos
enquanto o nosso quarto de brinquedos tilintar as sombras
que emergem de cada salpico do olhar para o vazio que intui
nossa infância sacrificada em um bosque de névoa e pólvoras.
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Ao redor de um renascimento
Deixei o teu nome desabar como uma fábula em meu coração.
As cicatrizes, defumadas ou pendentes, são ainda avarias cegas
que atiçam a fome dos desertos e as rosas murchas no túmulo.
A eternidade jamais sabe quando sair de cena, como os deuses
que um dia programamos para as funções de longe e perto.
Os lábios queimam o traslado de teu nome até o esquecimento.
As bordas dissolvidas por palavras que se repetem, exaustivas.
Os símbolos que saltam do peixe para um crânio extraviado.
Perdas que esvaziam a terra de suas cédulas de renascimento.
Os lagartos transtornados, que não sabem mais o que devorar.
Trouxe até aqui o teu nome, para que a noite lhe desse cura.
A queda evita falar de seus males, imagem repleta de fugas,
como um fogo eterno guardado para o sacrifício que não virá.
*
Pequenos caprichos da imagem
Um dia desses o céu não me dirá mais aonde vai
quando não o vejo. Soletro sua ausência no vazio.
Deve haver uma réstia sob a cômoda, uma dobra
retida pelo espelho, uma anotação em seu diário.
Em um desses dias faço a cama à espera do céu.
Não me importa quão longe ele tenha ido daqui.
Saberei reconhecê-lo quando o lençol ondular.
O céu ama a deriva tanto quanto o ninho refeito.
Eu amo a intempérie que ele me traz de viagem.
O resumo náutico de suas palavras extraviadas.
Aprendi com ele a não dar por findo nada na vida.
Tampouco a crer na fábula do ir e vir. Sempre achei
que o melhor truque do céu é não estar ali sempre,
por mais que acreditemos em sua presença perene.
O tempo que perdemos a explicar o que amamos
é o mesmo em que o céu se esvai sem motivo algum.
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(Fotografia de Pascual Borzelli Iglesias [detalhe])