Cinco poemas de Hilário Zeferino
eu sou o leão, a feiticeira e o guarda-roupa. me chamam de hilário zeferino (ou HiATO). sou poeta, artista visual, professora, tradutora e revisor. me graduei em letras vernáculas (UFBA) e atualmente faço mestrado em literatura e cultura (ppglitcult/ufba) e pesquiso poéticas contemporâneas e subjetividades atlânticas. sou filho de duas diásporas: do atlântico e do rio são francisco. atualmente em salvador, mas pertencendo a lugar nenhum. estou no livro “do que ainda nos sobra da guerra”, da editora ipê-amarelo (2020).
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sete vezes
contarei a mesma história:
a de todos os buquês que,
na intenção de te dar,
cultivei
mas nunca entreguei.
quem tem mãos para folhas
para galhos
para troncos
não é fácil de entender.
quem tem mãos para folhas
tem mãos para sonhos.
sete vezes
contarei todos os buquês
que dormem meus sonhos
e cultivam minhas mãos
como quem nunca amou.
*
dócil
“O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…
A que distância!…
(Nem o acho…)”
(“Aniversário”, Álvaro de Campos)
eu nem sempre tive esse rosto
assim
austero
e nem o riso fácil
e me esqueço quando vesti essa
carne
de gestos contidos
e calculados em todas as quinas.
dócil.
eu explodia.
o que hoje abafo sob
camadas
e mais camadas
de livros,
eu explodia.
vivo hoje sob a sombra
do amontoado de livros e
sob a rasura
da criança de metro e meio
que quebrou os dentes da colega-golias
com um murro,
e as costelas do outro colega,
com dois.
eu nem sempre tive rosto.
o que sou hoje é terem esculpido
em mim
um sorriso e duas lágrimas.
o que sou hoje é estar sobrevivente
a mim mesmo
como um fósforo frio.
tudo que eu escrevo,
sob este sol,
é o que me restou
depois de terem me roubado
todos os poemas que eu poderia ter escrito
com a raiva.
*
rizoma I
aguardo não esquecer nunca
das redes
dos problemas
do choro
do suporte
do que fizemos
[e do que fazemos]
de nós; por nós
sobrevivendo e
para
sobreviver
sem matar ninguém
[enquanto não for necessário]
*
nômade
“Eu não tenho chão
Nem um teto que me queira
Nem parentes que me saibam
Nem família que me seja
Tenho apenas uns amigos
Mas talvez só tenha um
Não tenho um amor que me ame
Um homem que aconchegue e guarde
Nem uma mulher eu tenho”
(“Chororô”, de Luedji Luna)
não morei.
nunca morei.
não morei em casas
nem em pessoas.
existo-nômade
dos afetos e de mim
mesma.
a coisa que eu caminho
foi quando me vi pleno
sozinho no deserto
dos sofás da sala
que estou.
moro apenas na beira
da aspereza
da morte.
o resto: que me venha
e que me vá.
*
ao redor de não poder
[ou não conseguir]
sair deste quarto
desta casa
deste corpo
deste mundo
invento nas luzes e nas sombras
motivos para bordar
com linhas de sol
em tecidos de sombra
um outro
quarto
corpo
casa
mundo
nesse que aprendi:
devia cuidar.