Cinco poemas de Isabella Martino
Isabella Martino é poeta e pesquisadora nascida em 1988 na cidade de São Paulo. Coordena o Clube de Poesia da Biblioteca Mário de Andrade.
***
primeiro sonho do ano
era uma nuvem de lava
um vulcão esbravejava
e no estrondo
eu me sentia casa
pulava tipo amarelinha
cada crosta que rachava
rodopiava
nos disformes do terreno
cantarolava o desmoronamento
tantas frestas se abriam
instantâneas
e o incandescente arrebentava
atingia meus olhos
um desejo atiçado por tudo o que ardia
há tanta vida no instante antes da pedra
é de movimento que se faz a rocha
não ainda não paraliso
ainda brinco com a morte
estou sempre a brincar com o fogo
mas já não sou a mesma
já não sou a mesma
mudo-me
drasticamente
neste caminho
*
vaticínio
é dado o momento
defronta-te com teu destino
já viveste a pré-história de tua vida
já confundiste o rastro pelo rumo
hoje estás livre do antolho
e de um jugo desigual
peço-te agora calma
porque tu és todo o arado
e de tantas
encontraste a tua
tão somente tua semente
agarra-te na imprevidência, mulher
faça-a tua melhor companhia
enquanto não souberes do vigor de suas raízes
enquanto não entenderes a época de seu plantio
nem o discernir das muitas tonalidades
de tuas noites
clamo-te calma
pois o tempo se faz amigo na espessura
afofa-o de modo a aconchegar tudo o que germina
deixa-o cair por entre os dedos
de mãos não mais tão trêmulas
não temerás o que te surge pela sombra
digo-te sem pressa
terás na memória tua força
não mais teu fardo
*
ondas de ossos quebram aos meus pés
Muerte escondida en los arrabales del silencio
en los sutiles pliegues de las sombras
¿soy el lanzado como una piedra por la mano de Dios en el agua de la existencia?
¿soy el que en ondas circulares irá creciendo hasta desbordarse en el vacío sin fin?
Óscar Hahn
I.
Diante do mar
impossível conceber
quais silêncios ali se agitam
qual sensação térmica ali se deita
tento cronometrar o tempo
até fincar o pé
no território da palavra
fim
nunca estive lá
mas dizem que bem no fundo
há uma escuridão inteira
que ainda vibra
e vive
II.
Diante do túmulo
impossível conceber
quais silêncios ali se agitam
qual sensação térmica ali se deita
tento cronometrar o tempo
até fincar o pé
no território da palavra
fim
nunca estive lá
mas dizem que de cada morto
há um gesto presente em alguém
que ainda vibra
e vive
III.
os homens desconhecem o mar
como desconhecem a morte
duas imensidões
de que não sabem sequer
o que não sabem
já tivemos mais homens
a explorar a lua
a mapear os buracos negros
a contabilizar constelações
do que os poucos que ousaram
mergulhar nas partes mais profundas
do planeta
IV.
os desaparecidos se reúnem
e somam silêncios
civilizações extintas
impérios esquecidos
homens vencidos
devem estar agora
submersos
intercalados juntos aos corais anêmonas
algas e mexilhões
afundo na areia
tentativa de fincar raiz no que é movediço
os dedos se encharcam do que já não existe
um vai e vem
de um vem jamais igual
a maré chega com força
ondas de ossos quebram aos meus pés
V.
quando estou diante do túmulo
de alguém que um dia amei
puxo o ar com muita força
prendo a respiração
mergulho de cabeça
no mar revolto da memória
há pequenas fotografias cravadas nas sepulturas
estão cobertas de sal
descortino as sucessivas camadas
busco o ponto exato
de um olhar que resiste ao tempo
o quanto de vida resultaria
dos anos de existência vividos
de cada pessoa aqui enterrada
a pressão aumenta
gelam-se as extremidades
os tímpanos quase rompem
tento ouvir o timbre de uma voz extinta
falta ar no sangue da ausência
o coração demanda mais força
os olhos ardem
a coisa mais difícil para um mergulhador
não é descer
lembrar não é perigoso
o mergulhador tem que tomar
muito cuidado para subir
como compreender
o quanto se deve esquecer
ninguém avisa e nos prepara
para o que é mais importante
é preciso sobretudo
pulmões fortes
para encarar a morte
*
[foto de Maurice Mikkers]
análise de uma perda
recolher lágrima por lágrima
investigar a fisionomia
as linhas que formam o tamanho da minha ausência
percorrer com um lápis cada caminho
dos traçados que guardam essa dor
o sofrimento tem o mesmo estilo das estrelas de nêutrons
a mesma imagem de um vírus mortal
é como a pupila de um grande amor
planetas ainda desconhecidos
dimensões distantes para as quais posso fugir
há pequenas cruzes nas lágrimas de luto
uma reza guardada em cada partícula
águas que como notas
formam juntas
um canto de lamento
a cada choro meu
um cortejo se ergue
*
o luto dos peixes
um chimpanzé morre
e todos do grupo
olham para o corpo por um longo tempo
alguns chegam perto e tentam reanimá-lo
três deles param de comer por dias
uma mãe babuíno perde seu bebê
um grande predador o devora
semanas depois
ela volta para o mesmo lugar
sobe numa árvore alta
começa a gritar
sons de um chamado
um pato fratura a coluna e é sacrificado
seu parceiro assistiu ao procedimento
e deitou-se ao lado do corpo
lá permaneceu por horas
e depois de dois meses
veio a falecer também
um elefante mata o outro em uma briga de machos
todos da manada
tocam a cabeça do falecido com suas trombas e patas
inclusive com suas patas traseiras
fazem uma vigília silenciosa ao corpo
cobrem o cadáver com ramos e folhas
e depois de meses
voltam para os ossos
voltam para os ossos um pouco como nós
quando vamos a um cemitério
todos entendem o que é permanência
menos os peixes
quando um morre
o cardume
segue nadando