Cinco poemas de Jeanne Callegari
Jeanne Callegari (Uberaba, MG) é poeta. Escreveu os livros Botões (Corsário-Satã, 2018) e Miolos frescos (Patuá, 2015), ambos de poemas, e Caio Fernando Abreu: inventário de um escritor irremediável (Seoman, 2008), perfil biográfico do autor gaúcho. É curadora, organizadora e poeta residente do Macrofonia!, noite mensal de poesia e audiovisual ao vivo em São Paulo (SP), realizado desde 2017. Com Raul Costa Duarte, tem o projeto poético-sonoro Botões, que investiga as relações entre poesia, ruído e paisagens sonoras, e, com Maíra Mendes Galvão, forma o duo Pingues ovelhas, de pesquisa em poesia, performance e tradução.
Os dois primeiros poemas são de Miolos Frescos, o terceiro e o quarto de Botões, e o quinto de A mulher dos ossos (em preparação).
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corpo pretérito (memento mori)
no século 16, a capela dos ossos foi construída por um franciscano
com os crânios de 5 mil monges, em évora, portugal
ali perto, em faros, outra pequena capela feita de ossos foi erguida em 1719
entre seus adornos está um esqueleto revestido de ouro
a capela mortuária de eggenburg, na áustria, foi inaugurada no início do século 14
com os restos mortais de 5.800 pessoas
na república tcheca, em brno, o ossuário subterrâneo da igreja de são tiago
guarda 50 mil esqueletos e está aberto ao público desde 2012
os restos mortais de milhares de frades ficaram enterrados por 30 anos
antes de serem usados nas paredes da cripta dos capuchinhos, na itália
erguido com ossos dos mortos pela peste no século 14, o ossuário de sedlec
foi tema de um curta-metragem de jan svankmajer, em 1970
“nós ossos, que aqui estamos, pelos vossos esperamos”,
diz a inscrição na entrada da capela de évora
na alemanha, em augsburg, um relógio
em que a Morte marca a hora
*
28 de outubro, 2012
dia de eleição em são paulo. assisto
à apuração no apartamento da mãe
da minha amiga. a amiga está lá, sua mãe,
o irmão, o marido. comemos bolo
de mandioca e tomamos vinho em taças
pequenas, bonitas. nessa e phillip
se juntam a nós. a sala está abafada
e vamos para a varanda, de onde dá pra ouvir
a gritaria das crianças nos prédios ao redor. eu me sinto
muito produtiva: acordei cedo,
lavei a louça com meu ritual específico,
depilei as pernas, ouvi cocteau twins e escrevi um poema
sobre uma amizade perdida.
phillip lavou roupa, arrumou o quarto, limpou as mesas,
levou o lixo para fora e saiu para o samba. escrevi um ensaio
de 585 palavras
sobre “por que não sou um pintor”, de frank o’hara.
de repente a chuva, granizo no vidro. quando ela para,
saio. o apartamento da mãe de minha amiga
é na rua de baixo. o ar está fresco, agradável,
eu gostaria de fazer um caminho um pouco mais longo,
andar um pouco mais. chego
ao apartamento depois de errar
de elevador e abraço minha amiga. finalmente
o candidato, de camisa vermelha, aparece
para o discurso da vitória. noto, pela primeira vez,
que tem covinhas. na semana anterior, vi dez mil pessoas
na praça afirmando que havia amor em sp. o ar está abafado
e leve. minha amiga comenta
como é bom ter um prefeito que não menciona deus
uma única vez em seu discurso.
*
alicate
sobre o que se pode cortar. pele que se derretida em brancos e azuis, que coisa é o vermelho, uma cor tão escolhida. preferencialmente sem escalavrar grandes granduras, o mar é raso, o tesouro sutil rutilado, trabalho a liquefazer antes que o sol –
na boca apodrecem, fora da mão apodrecem, endurecem, metal guarda os portões, mais que guarda, garante, mais que garante, decide. é de cuidar, não jeito, não força, milênios delicada e todas aquelas fomes no deserto, todas as fogueiras e vigias, para aqui. cutículas e um guindaste, um teto, tudo isso e tanto –
*
uma terça-feira
a tarde transita em transparências, urdida na falta, afasia, querer uma fala, atônita. acusada e afetada na arena, textura de terra agravando, garganta, alarmando o laranja. é tarde, transita e tergiversa, é tarde, grava e gargalha, é tarde, trans-parece na troca. perece, escala a esfera, perece, falha afetada, perece, asceta dispersa, muito não foi feito e não tarda, muito e não em tijolos, um estalo estreito no meio do queixo, um azul que se rasga. daqui desse ângulo não deixa de haver o furto ou o frio. uma nesga extraída, extrato que espalha, estalo de fogo de asas.
*
calmaria
cem dias imóveis
as correntes dormitam
os ventos esqueceram de nós
o oceano, um
espelho
o alimento rareia e com ele
os gestos, a voz
inútil soltar os pássaros
nenhuma terra
à vista
há quantos dias estamos aqui?
ao longe pensamos ouvir um eco
vazio dos estômagos
acima sempre o mesmo sol
inerte
há quantos dias estamos aqui?
a pouco e pouco
nos tornamos um com o barco
um com o mar
ao longe ouvimos um eco
nunca estivemos em outro lugar
nunca estivemos
em outro
lugar