Cinco poemas de Luara Caiana
Luara Caiana. Mulher negra nascida no cerrado, artesã e poetisa desde a infância, escrevivente por natureza. É assistente social e mestra em política social pela UFMT, militante na vida e na escrita. Evidencia a potência da população negra nos cadernos espalhados pela casa, escrever sempre foi seu refúgio, lugar de lutas e derrotas, tristezas e amores, sonhados ou vividos e de germinar esperanças.
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À Deriva
Há muito tempo não escrevo
Minha mente está sempre cansada
Mas as palavras continuam em mim
Misturadas aos afetos
agarradas aos desejos
escondidas dos medos.
Tentei afogá-las em lágrimas
E no álcool gelado ou ardente
Foi náufrago duro de sobreviver…
Mas, cansei!
Não mentirei mais pra mim.
Palavras eu me escrevo
Escrita me liberto!
*
Mascarada
Queria ter vindo na manha, mas foi murro, pontapé, tropeço. Agradeço, saí do casulo na marra! Virei do avesso o susto do mundo quando me viu, um salto suave na imensidão de ser. Aos olhos de muitos me desfiz e mascarada eu não via minha própria luz.
*
Ubuntu
A força invisível que sustenta esse corpo
o calor que te aquece
e te faz ferver o sangue
a ginga que te balança no samba
a garra que te pôs no mundo
que te leva longe
que te empurra ladeira acima
A dureza que protege teu coração
que te sustenta
e te desafia dia após dia
A beleza desses traços, nariz, cabelo e lábios
a luz que ilumina tua mente
que empretece nossa gente
é a mesma que me faz seguir adiante
que fez nosso povo guerreiro sobreviver ao cativeiro
à dor e ao desespero
Nossa luta não é em vão
Nossas armas não são letais
Nossa maior vingança é resistir
crescer e prosperar
Quilombos urbanos de resistência
fortalecem nossa essência.
Não desistir, não se entregar
Bater o pé e o tambor
Ficar Firme!
Ainda que a lágrima seja muita
Amar ainda que o ódio ecloda.
Nossa paz não é branca
e não hasteia bandeiras
Nossa paz é preta, é cabeluda, é treta!
É escurecer cada canto embranquecido
desse mundo
É entoar nosso canto
Enxugar o pranto
Ser acalanto
Sorrir para os nossos
Nos dar os braços
Abrir nossas mentes
Fortalecer a luta, bruta, batuta!
Amor e fúria
Ódio transformado em matéria prima
para a poesia, para a arte
Minha paz, nossa paz, não fala baixo
ela grita alto, empina o peito
Ela machuca quem acha que não tem jeito
Eu sou porque tu és e tenho orgulho do meu povo preto
*
Ventania
Nunca fui boa em ouvir
E em me ouvir
Por maior que fosse a evidência…
Desci o poço sem fim
à procura de uma luz
que estava dentro
Mas não via
Como um vagalume cego
Procurei o brilho em ouro de tolo
troquei minhas relíquias
Por bijuterias.
Joguei sementes de amor
Em terras inférteis
enfraqueci minhas raízes
Ventania me balançou
Desfolhei…
Chuva forte preparou o terreno
para os brotos de meu amor-próprio.
*
Via-crúcis
Tá osso, merimã
Tá duro, mana!
É pesado, ver preto e pobre
defendendo bacana…
Escondendo sua cor, sendo fraco, covarde, banana!
E essas lágrimas, não se iluda amigo, não são de crocodilo!
São a expressão forte de quem ama
De quem resiste, sacode a poeira e vibra com a força de ilê Aiyê
Eu não sou criança, mas quem me dera
ainda ter minha mãe me embalando na cama.
Fechar os olhos e só ver a beleza de quem não engana
Só sentir o verde, a luz, o azul…
A paz sincera
Sem saber as merdas que fazem os seres humanos
nesse mundo sacana!
Meu grito é de dor
mas a resistência é o que fortalece meu ser
Nessa via-crúcis
Et panis circenses!
Quero esquecer aquela imagem
corpos jogados e o sangue que ainda derrama
O nó é forte na garganta…
E onde estão suas almas
que não em suas camas?
É Síria, África, Bangu e Pedrega
Onde a polícia mata
e o povo renega
O estado não vê que são seus os braços
da mão invisível da morte
Falta de sorte.
Sorte.
Não há trevo de quatro folhas que traga.
Nossa sobrevivência é a força da ancestralidade
Nada apaga nossas cores, dores, sonhos
É a cultura de um povo que rala, rola, chora e se consola
Mas que nunca arrega.
Quando um cai, muitos se levantam.
Cadê Deus nesses rolês?!
Onipotente, onipresente, onisciente.
Em quantos você crê?
Qual a cara do Deus que você quer ver?
José Tadeu Gobbi
Que maravilha ler você, luara.