Cinco poemas de Marcos Silva
Marcos Silva nasceu em São João da Boa Vista em 1969. É sociólogo e professor, autor dos volumes independentes Escracho Fetiche (1990) e Lugar Comum (1992), co-editou as revistas Caracol Viola e Empório do Osório. Estes poemas são inéditos e em breve estarão no Ópera Geológica, a ser lançado pelos Livros Nômades.
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Trilhas de ferro
Repousados sobre dormentes,
os trilhos seguem a trilha batida.
Maria-Fumaça, Trem-Bala,
a tônica da velocidade
feito fosse essas coisas
que não passam: bem e mal,
ciladas preparadas pela saudade,
o murmúrio das madrugadas.
É ferro lambendo rodas, e rodas
lambendo trilhos – ferro contra ferro,
num tesão esquisito aos solavancos,
sob o hálito morno dos vagões e
da máquina de mandíbulas ferozes
que nunca para em estação alguma,
que nunca abre concessão.
Parece até que se chama vida.
*
Van Gogh no autorretrato de 89 em St.-Rémy
Da ponte espreita-se a paisagem:
a tulipa, o moinho de vento e o atípico girassol
– tenso contraste entre os tons vibrantes de amarelo
e o árido marrom.
[O olhar convulsivo teima na mescla de colorações detonantes:
explodem as cores de uma paisagem sempre perturbadora]
Ali por volta de 1880, a Europa ainda era vasta,
devastado era o coração do homem túrbido – tipo insano
de poeta.
Ainda que não fale, o tempo não se cala;
e conhece as cicatrizes dos amores mal curados.
À vida, a morte: cortar o mal pela raíz
e entalhar na pictórica incomum vibrante cicatriz.
Assim, a contemporaneidade – besta-fera de cascos indomáveis –
sempre virará históra.
Mesmo com os trampos densos dos ministérios da economia,
haverá memória –
ainda que o tresloucado gesto viceje no membro decepado
que museu nenhum tem guardado.
*
Cama, mesa & banho
Ali pelas tantas é que bate a larica.
Laís e eu lavamos as partes íntimas
e vamos para a cozinha: outro sopão
pré-preparado de bacon com ervilha.
Virgulino amava Maria como amo
desde sempre essa mulher maravilha.
No meio da noite, mascamos nossos
mais íntimos e antigos segredos,
digerimos o doce, o salgado e o azedo
e esperamos que o dia que se anuncia
seja mais um dos muitos brinquedos.
Respiramos cada tempero de nós
e chacoalhamos o farelo de pão na
cuba da pia. O resto só não é silêncio
porque a geladeira insiste em bater
papo com o fogão, surdo aos
reclames de enfastio e solidão.
*
Entre bolachas e ametistas
Então tá. Como está certo que iremos falar
de amor cifradamente, vou chulear lirismos
pra ver se no fim produzo finos poemas.
E você, mantenha o brilho alvo no castanho
calmo dos seus olhos ao me topar por acaso
entre gôndolas de bolachas de maizena nos
supermercados do exílio que jamais terminará.
Afinal, não há anistias para bondes tomados
em tempos errados, da mesma forma que não
há data marcada que se encerre em acerto.
Então tá, não há possível ametista nesta jazida,
avenida de senão onde se transita na contra-mão.
*
Lírica bruta
Ao que se sabe fura, bata o quanto baste,
a água mole na pedra dura.
Do alto de nossa miudeza temporal,
jamais saberemos o produto último –
fruto de robusta, arrojada e paciente
ópera geológica.