Cinco poemas de Mary O’Donnell
Mary O’Donnell é uma das autoras contemporâneas mais conhecidas da Irlanda. Seus livros de poesia incluem Spiderwoman’s Third Avenue Rhapsody (Salmon Poetry, 1993), Unlegendary Heroes (Salmon Poetry, 1998) e Those April Fevers (Ark Publications, 2015). Seus poemas também estão disponíveis em húngaro como Csodák földie, uma publicação da editora Irodalmi Jelen Könyvek. Seus quatro romances incluem Where They Lie (2014) e The Light Markers, sua primeira obra no gênero, reeditada no ano passada por 451 Editions. Em 2018, foram lançados um volume de ensaios, Giving Shape to the Moment: the art of Mary O’Donnell, por Peter Lang, e uma nova coletânea de contos, Empire, pela Arlen House. Também é ensaísta e crítica literária. Seu ensaio “My Mother in Drumlin Country” foi incluído no rol de Ensaios e Textos de Não-ficção Notáveis de 2017 e publicado em Best American Essays (Mariner, 2018). É membro da AOSDANA, Associação de Artistas Multidisciplinares da Irlanda. Os poemas abaixo foram publicados no v. 20, n. 2 do ABEI Journal em 2018 (organizado por Mariana Bolfarine e Marisol Morales-Ladrón), acompanhados da tradução para o português realizada por Divanize Carbonieri (ABEI Journal, v. 20, n. 2 (2018)). Site: <http://www.maryodonnell.com>.
***
The Religious Orders
Like mushrooms, they once grew to fruit
in the darkness of want, hunger,
tantalising with feasts of prayer.
They failed to recognise a pattern:
habitual but porous, spat into by long rains,
their bell-echoing cloisters closed,
chasubles unravelled, and sacred implements –
chalice, thurible, became brutal and historic.
The ritualised grip finally unclenched
on the day the vast doors closed,
hotels moved in, implanting resort families
whose infants romped in blue pools
once monastery gardens of delphinium,
tip-trembled by hums of bees.
The old men’s Hebrew, Greek, Latin,
years of Masses, believing against logic
in a passage of blood to wine,
believing against logic in a mill-wheel
of droned phrases – we adore you,
we bless you, we glorify you! –
that solemn arc, now erased by women,
fertile as mushrooms, whose language
was not written in the wet darkness
of ancient poverty, but one day
snapped in view for thirty seconds –
fleshy and phallic as Lepiota[1],
glistering with life,
before vanishing from sight.
[1] This is a type of mushroom
–
As Ordens Religiosas
Como cogumelos, elas um dia amadureceram
na escuridão do desejo, da fome,
tentadoras com banquetes de preces.
Não conseguiram reconhecer um padrão:
comuns, mas porosas, cuspidas por longas chuvas,
seus claustros cerrados ecoando como sinos,
casulas desvendadas e implementos sagrados —
o cálice, o turíbulo, se tornaram brutais e históricos
O aperto ritualizado finalmente afrouxado
no dia em que as amplas portas se cerraram,
hotéis moveram-se para ali, implantando famílias de balneários
cujos bebês brincavam nas piscinas azuis
que um dia foram jardins de delfínios em monastérios,
tremeluzindo com os zumbidos das abelhas.
O hebraico, o grego e o latim dos antigos,
anos de Missas, acreditando contra a lógica
na passagem do sangue em vinho,
acreditando contra a lógica numa roda de moinho
de frases recorrentes – nós te adoramos,
nós te abençoamos, nós te glorificamos! —
aquele arco solene, agora apagado pelas mulheres,
férteis como cogumelos, cuja língua
não foi escrita na escuridão úmida
da antiga pobreza, mas que um dia
estalou visivelmente por trinta segundos –
carnuda e fálica como um Lepiota[1],
brilhando cheio de vida,
antes de desaparecer da vista.
[1] Um tipo de cogumelo.
*
On Reading My Mother’s Sorrow Diary
(The counsellor said “God wanted him”,
“I wanted him more”, she replied and left).
The diary was the thing, labelled
‘Sorrow, no laughter in these pages’,
double underlined.
I expected smoking syntax, tirades
against her daughters. Instead, she wrote of loss,
the felling of trees; herself split in two
and feeling useless, but happy when we visited,
happier still if we were happy.
She despised the holiday with us, her idea;
‘Never again’ to a car journey from Malaga
to Jeréz (‘filthiest town I’ve ever seen’),
and she’d scream if my husband attempted
Spanish one more time, his Gracias Senõrs
alarm-bells of grating over-eagerness
within the fortress of her well-travelled
knowledge. Mostly, she wrote from day to day.
‘A good day. Did some shopping’.
‘God when will this end, when will we be together?’
She blessed us, her daughters;
her paper refused harsh words, what there was,
scrupulously overlaid with her code,
an apple, an apple,an apple[2],
the surefire way to make illegible.
We remained her lovely girls, no slight to us
while even in grief she edited herself.
[2] ‘an apple, an apple, an apple’ is written over words in English when a person wishes to make those words unreadable by others!
–
Lendo o Diário de Tristeza de Minha Mãe
(O conselheiro disse “Deus o quis”,
“Eu o queria mais”, ela respondeu e saiu).
O diário era o objeto, intitulado
“Tristeza, nada de risos nessas páginas”,
sublinhado duas vezes.
Eu esperava encontrar uma sintaxe obscura, tiradas
contra suas filhas. Em vez disso, ela escreveu sobre a perda,
a derrubada das árvores; ela mesma dividida em duas
e sentindo-se inútil, mas feliz quando a visitávamos,
mais feliz ainda se estávamos felizes.
Ela desprezava o feriado conosco, ideia dela;
“Nunca mais” para uma viagem de carro de Málaga
até Jeréz (“a cidade mais suja que já vi”),
e ela gritaria se meu marido tentasse
Espanhol mais uma vez, os Gracias Señores dele
alarmes de crescente ansiedade
dentro da fortaleza do seu muito viajado
conhecimento. Na maioria das vezes, ela escrevia no dia-a-dia
“Um dia bom. Fiz algumas compras”.
“Deus, quando isso vai acabar, quando estaremos juntos?”
Ela abençoou a nós, suas filhas;
o seu diário recusava palavras duras, que haviam
escrupulosamente se sobreposto ao seu código,
uma maçã, uma maçã, uma maçã[2]
a maneira infalível de tornar ilegível.
Nós continuávamos sendo suas amáveis meninas, nada de ruim sobre nós,
enquanto que, mesmo na tristeza, ela editava a si mesma.
[2] Escreve-se “an apple, an apple, an apple” [uma maçã, uma maçã, uma maçã] sobre palavras em inglês quando se deseja torná-las ilegíveis para outras pessoas!
*
Nocturnal
In the winter garden
at full moon.
I watch the fields
turn to watered silk,
a chemise for the ghosts of me;
sense the pace of a journey,
steady and slow,
across constellations,
across my skin.
Barefoot,
my toes ease out,
loosen to pale fish-tails.
Nobody sees, and I float,
released.
We are not so alone, after all.
I can praise the moon, which bears
the tick of my tired mind,
the worn churn of sadness;
in this light I can praise a tree,
solitary at last,
so I stretch myself around the bole,
arms now glittering dorsals,
and still, nobody sees.
I am dropped on a song line
to this reef home.
It holds me on secret shelves of light,
bushes by day, now filmy cushions
that flimmer sea-green.
Moon and trees,
lit to new shapes,
the lobe of my darker self
swimming free.
I am all tail and fin,
scales bulge with weight of words,
my fugitive grace.
There is nothing but
this rhythm, rocking,
rocking…
–
Noturno
No jardim de inverno
na lua cheia.
Observo os campos
virarem seda molhada,
uma camisa para meus fantasmas;
sinto o ritmo de uma jornada,
estável e lenta,
através das constelações,
através da minha pele.
Descalços,
meus dedos dos pés se aliviam,
soltos como pálidas caudas de peixe.
Ninguém vê, e eu flutuo,
livre.
Não estamos tão sós afinal.
Posso louvar a lua, que carrega
o tique da minha mente cansada,
a reviravolta gasta da tristeza;
nessa luz, eu louvo uma árvore.
solitária por fim,
então, eu me estico em torno do tronco,
com os braços agora como brilhantes barbatanas,
e, ainda assim, ninguém vê.
Estou solta numa partitura
até essa casa de recifes.
Ela me prende em abrigos secretos de luz,
arbustos de dia, agora almofadas macias
aquele verde-mar tremeluzente.
Lua e árvores,
iluminadas em novas formas,
o lóbulo do meu eu mais escuro
nadando livre.
Sou toda cauda e barbatanas,
escamas avolumando-se com o peso das palavras,
minha graça fugitiva.
Não há nada além
desse ritmo, balançando,
balançando…
*
Sacred Sea – Visby
A white ship anchors in the harbour.
Seagulls perch with tucked-in wings
on coils of rope; cafes leak their scent
to the darkening hour.Rain expected,
the townis folding down to darkness.
As the storm rolls through the streets,
leaves fall to the gutter’s mouth.
I hesitate to peer at these Byzantine discards —
bronze, red-veined — someday,
I too will be pure leaf, leaving only residue.
I considermy restive escapes
to this or that refuge, turn shoreward again,
in search of winter in sinuous drifts,
my head bent to snowy pages,
the quick spark of a colder sun.
–
Mar Sagrado – Visby
Um navio branco ancora no porto.
Gaivotas se empoleiram com as asas recolhidas
em bobinas de corda; cafés vazam seu odor
até a hora de escurecer. A chuva esperada,
a cidade se dobra para a escuridão.
Enquanto a tempestade rola pelas ruas,
as folhas caem até a boca das sarjetas.
Hesito em olhar para esses descartes bizantinos –
de bronze, de veios vermelhos –algum dia,
eu também serei folha pura, deixando apenas resíduos.
Considero minhas fugas inquietantes
para esse ou aquele refúgio, voltado novamente para a praia,
em busca do inverno em flutuações sinuosas,
minha cabeça se curva para páginas cobertas de neve,
a faísca rápida de um sol mais frio.
*
The men I once knew
The men I once knew offered gifts,
like male penguins offering stones to a female
in the competition for courtship.
One offered a bag of lemons, bright and shiny,
still warm from the Mediterranean garden
where he plucked them. Another took me
on a boat. It had no life-jackets. We sailed
dangerously and I was sea-sick for hours.
It’s no problem, he said, just watch the horizon.
The third kept painting me, Botticelli’s Venus,
he murmured, digging his brush
to the canvas, failing each time to find a line
to match the line of my thigh.
Lemons. Life-jacket. My thigh.
We failed calamitously,
but even now on any day,
I can’t say I ever felt ruined
by their attentions.
It was how we passed the time,
pleasantly.
–
Os homens que conheci
Os homens que conheci ofereceram presentes,
como pinguins machos oferecendo pedras a uma fêmea
na competição para o acasalamento.
Um ofereceu um saco de limões, claros e brilhantes,
ainda quentes do jardim mediterrâneo
onde ele os colhera. Outro me levou
num barco. Não havia coletes salva-vidas. Navegamos
perigosamente e fiquei enjoada por horas.
Não há problema, ele disse, apenas observe o horizonte.
O terceiro ficava me pintando, a Vênus de Botticelli,
ele murmurava, afundando seu pincel
na tela, falhando toda vez para encontrar uma linha
que combinasse com a linha da minha coxa.
Limões. Colete salva-vidas. Minha coxa.
Fracassamos calamitosamente,
mas mesmo agora num dia qualquer,
não posso dizer que alguma vez me senti arruinada
pela atenção deles.
Era assim que passávamos o tempo
agradavelmente.