Cinco poemas de Régis Bonvicino
Régis Bonvicino nasceu em São Paulo em 1955. Graduou-se em direito pela Universidade de São Paulo em 1978. Como poeta, publicou dois pequenos livros nos anos 1970, ainda muito jovem, em edição do autor: Bicho Papel (1975) e Régis Hotel (1978). A partir dos anos 1980, lançou Sósia da Cópia (Max Limonad, 1983), Más Companhias (Olavobrás, 1987), 33 Poemas (Iluminuras, 1990), Outros Poemas (Iluminuras, 1993), Primeiro Tempo (Perspectiva, 1995, reunião dos livros Bicho Papel, Régis Hotel e Sósia da Cópia), Ossos de Borboleta (Editora 34, 1996), Together – um poema, vozes (Ateliê Editorial, 1996), Céu-Eclipse (Editora 34, 1999), Remorso do Cosmos (de ter vindo ao sol) (Ateliê Editorial, 2003), Página Órfã (Martins Fontes, 2007) e Estado Crítico (Editora Hedra, 2013). E uma reunião, em 2010, de sua produção: Até Agora, de Régis Bonvicino (Editora Imprensa Oficial, 564 páginas).
No exterior publicou também Sky-Eclipse, Selected Poems (Los Angeles, Green Integer, 2000), Lindero Nuevo Vedado (Porto, Edições Quasi, 2002), Hilo de Piedra, plaquete editada pela Sibila, Revista de Arte, Música y Literatura, n. 10 (Sevilha, out. 2002, com poemas de Céu-Eclipse e de Remorso do Cosmos), Poemas, 1999-2003 (Cidade do México, Alforja Conaculta-Fonca, 2006) e, na China, Blue Tile (Hong Kong, The Chinese University of Press, 2011), com tradução do poeta Yao Feng. Foi lançado em 2017 Beyond the wall: New Selected Poems pela Green Integer, de Los Angeles. Beyond the Wall é o seu segundo livro individual editado nos Estados Unidos.
Os poemas abaixo pertencem ao libreto Deus devolver o revólver, que será lançado no final deste mês. Para ouvir, clique aqui.
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Álibi
Lido por Régis Bonvicino
Oh, Pai, tende piedade
dos zilionários, dos vendedores legais de armas
dos lobistas, do dinheiro farto dos narcos
dos unhas de fome, dos gigolôs dos cassinos
dos traficantes de iguanas, rim e fígado
Oh, Pai, tende piedade
dos banqueiros, dos juros sobre juros,
do laissez-faire chinês, do marketing do bem
dos plutocratas, dos fundos-abutres
garras, o condor-dos-andes não canta
Oh, Pai, tende piedade
dos meões do dinheiro sujo dos contratos públicos
daqueles que depreciam os papéis de P.P. Pasolini
daqueles que lavam dinheiro com H. Matisse
misericórdia divina, delícia e êxtase dos santos
Oh, Pai, tende piedade
dos xeques, dos grandes proprietários de terra
daqueles que não entregam a lebre
dos traficantes de marfim, caveiras com dentes e pedras
da criptomoeda, dos chefetes políticos despóticos
Oh, Pai, tende piedade
dos traficantes de lixo eletrônico, dos agiotas
dos matadores de aluguel, dos guarda-costas
dos sócios ocultos, dos donos de offshores
Oh, Pai, sobretudo tende piedade de nosso honrado boss.
*
Perspectiva
Lido por Régis Bonvicino
Muro baixo do cemitério
um galho da tipuana atravessa o arame farpado,
túmulos à vista, altos
duas cruzes de mármore
do lado oposto da rua
um cara estirado na calçada
debaixo das grades da janela do térreo
o motorista dá a partida
um casal: o marido empurra o carrinho do bebê
pessoas entram no edifício de tijolos à vista
na pequena casa geminada: consertos rápidos,
costureira na máquina
um gavião pousa numa antena
o cara acorda
olha para as grades, mija na parede,
mais uma loja fecha
a de aluguel de fantasias,
roupas para teatro e cinema
um mendigo se apaga nessas linhas
outro reaparece na cena
*
Lápide
Lido por Régis Bonvicino
Os soluços longos dos violinos do outono
aqui Rimbaud
aquele otário
te enrabou por uns trocados
*
Haiku
Lido por Régis Bonvicino
Pedra no cachimbo
Estação da Luz: porrada
Verão, sol lilás
Pedra, narguilé
Doce como mel: porrada
Verão, o sol âmbar
É o Incrível Hulk
Um avião nos pés: porrada
Janeiro, sol púrpura
Uns tragos na lata
De asas já nos pés: porrada
Março, sol turquesa
Cachimbo, cristal
Braços alados, porrada
Março, um raio fúcsia
Lata sem anel
O anu bica o olho do noia
Isqueiro na dobra
Pedra no cachimbo
Arco-íris nos pés, porrada
Dezembro, sol sépia
Canudo, Yakult
Mãos lixam o céu, porrada
Março, sol magenta
Cachimbo na roda
Garras de tigre, porrada
Janeiro, sol jade
Em nome de Buda,
Nada obstante uma brisa
Verão, sol sem cor
Cavalo, porrada
O tubo de pvc
Outono, sol ágata
*
Áudio
Lido por Caroline De Comi
O sol da manhã bate em sua cara
deitada no chão
rente à mureta do parque
fios de cabelo branco escapam da tiara
cabeça sobre a bolsa
em frente à torre do relógio da estação
hibiscos vermelhos:
renques ao longo das grades
mão sobre o rosto
talvez ela tenha chegado no último trem da noite
talvez ela não esteja dormindo
talvez ela esteja sem clientes
vestido longo cinza
sapatos baixos, pele seca dos pés
talvez ela esteja a caminho do emprego
talvez ela vá pegar o metrô
a polícia aqui não mata todos os dias
ao fundo palmeiras em linha
mendigo negro, cabeça baixa,
de novo, sentado na guia
um ambulante vende água
talvez ela tenha escrito os versos:
“desatenta, fui castigada,
passei a vida ao largo”.
talvez ela tenha feito algum dinheiro
talvez ela seja figurante de um filme
talvez ela seja um cartaz perdido
a luz, rasante, incide sobre as rugas de seu rosto
a mandíbula de uma arara
um gavião pousa no topo de um cedro
mais alto que os prédios
talvez ela seja um acará ou uma carpa
espelhos d’água
uma andorinha, fosforescente, sobrevoa a grade
talvez ela não seja mais que um efeito de arte
talvez ela não passe de um close-up