Cinco poemas de Renata Ferreira
Renata Ferreira nasceu em Duque de Caxias (RJ). É poeta, comunicóloga e pesquisadora na área de Literatura Brasileira. Clarão desassossego, seu primeiro livro de poesia, é um dos lançamentos de 2020 da Patuá, e já está em pré-venda no site da editora.
Instagram: @chez_foli
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bios(escrita)
Prometi que minha poesia não seria autobiográfica/intimista
fiquei impactada com a frase de Clarice em Água Viva
“quero ser bio”
mas, eu salto nos versos
Num confronto com a alteridade
ignoro o meio, a interdependência
ignoro as vidas que me atravessam
e não toco o político
São forças que não controlo
não consigo abdicar do individualismo extremado
das experiências subjetivas
desimportantes
da banalidade da poesia
Isso pode ser bom
não serei acusada de panfletária
não será minha a responsabilidade político-social do poema
Pura má vontade ou covardia?
não te conto
só sei que o ser político em mim finge brincar de esconde-esconde
e, às vezes, gosta
não corro o risco de ter a cabeça cortada
Lembrei de um conceito do Candido
heterobiografia:
[a história do “eu”, do “outro” e da sociedade, simultaneamente]
parece simples, mas não é
não saberia contar essa história
a bios parece ter morrido em mim
(talvez em nós)
seria este um aspecto da sociedade contemporânea?
tornar oculto o que é comum a todos?
desprezar a experiência coletiva?
a vida política e humana em sua essência?
não saberia responder
afinal, o que pode um poeta?
Hoje, as palavras adoecem
forças destrutivas anulam a consciência e o fazer poético
o que resta escrever?
fragmentos da vida cotidiana quase nua?
poesia sem valor estético-político?
O fato é que minha capacidade de compor foi afetada
tenho dificuldades de dialogar com a trama do mundo
para alguns, não é uma escolha
a relação entre vida, poesia,
história e política
é muito forte
Não estou apta para as exigências da arte
ela não tem limites
não passa de um laboratório de experimentação do domínio
total
*
forma de vida
o animal em mim
morto
fede
mas não abandona o corpo
que segue
ereto
na medida do orgulho
os pés
cansados
fingem
uma humanidade
desmedida
enquanto
a cabeça
molde perfeito
sorri
para o inferno que a sustenta
*
elas
nunca aprendeu a descascar batatas
a faca afiada corta a “carne”
exageradamente
sem pudor
transcende os limites da casca
violência
arranca os “olhos”
os brotos
[elas já não brotam, nem sangram]
coisa ínfima
sem pestanejar
cozinha todas
para [no fim do prazer] esmagá-las
*
leis internas
o inferno é ali
:
por horas
a mulher
preta-mãe
range os dentes
chora
sem dar um pio
nas mãos
o sangue quente
da criança
na face
o bafo quente
da morte
eles observam
o último suspiro
“ninguém entra
ninguém sai”
preta-mãe
reza em silêncio
preta-mãe
não tem voz
o que pode um corpo?
(o corpo de mãe)
*
ordem-desordem
em meio ao caos-ansiedade que me preenche:
1. como um quibe velho mergulhado na pimenta adormecida há meses na geladeira. não lembrava de sentir o coração acelerado desde a morte do potro – não há mais quem cavalgue em meu peito;
2. de quando em quando, descongelo a malagueta e ponho à mesa – isso nas raras vezes que recebo visitas;
3. o gosto picante que odiara por tanto tempo penetra a boca, pinica a língua, me faz arder-pensar-gozar;
4. já não era mais, deixei de ser, perdi-me numa escolha fácil, dessas na qual a vida nos faz chegar sem gosto, sem viço;
5. congelada por anos, ensaio voltar à temperatura normal;
6. 37°;
7. ter febre, talvez;
8. TRANSPIRAR;
9. perder os sentidos;
10. RE(ENCONTRAR).