Cinco poemas de Ricardo Rizzo
Ricardo Rizzo (Juiz de Fora, 1981) é autor de Cavalo marinho e outros poemas (Nankin Editorial, São Paulo, 2002), Conforme a música (plaquete, Espectro Editorial, Belo Horizonte, 2005), País em branco (Ateliê Editorial, São Paulo, 2007), Estado de despejo (e-galáxia, 2014/Patuá, São Paulo, 2016), Canção do arbítrio (Patuá, São Paulo, 2018), Estudo para uma execução (plaquete, Galileu Edições, Londrina, 2019) e Sobre rochedos movediços: deliberação e hierarquia no pensamento político de José de Alencar (Hucitec/Fapesp, São Paulo, 2012). Traduziu e organizou do poeta Bill Knott a coletânea O Inimigo (plaquete, Galileu Edições, Londrina, 2020) e do poeta Chales Simic a coletânea Meu anjo da guarda tem medo do escuro (Editora Todavia, São Paulo, 2021).
“Vila Suicídio” está no livro País em branco, de 2007; “Discurso sobre a existência do isqueiro” em Estado de Despejo, de 2013; “Estudo para uma circuncisão” em Canção do arbítrio, de 2018; “Estudo para uma carta”, inédito em livro, foi publicado em plaquete da edição de setembro de 2019 do evento Vozes e Versos, organizado por Tarso de Melo e Heitor Ferraz. “Estudo para um compasso” é inédito.
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Vila Suicídio
De madeira podre
as vigas não partem.
Nenhuma casa caiu
no terremoto, ou depois.
Há quinze estátuas gregas
no pátio da igreja
que não descascam
e quinze cruzes cravadas no pasto
que não cedem à umidade.
Uma comissão de notáveis
reúne-se
à porta do mercado
(onde os peixes se batem)
para redigir o manifesto.
A minuta diz:
“Um fantasma ronda
as cruzes do pasto…”
Enquanto gestam o fantasma
é sempre de um dia claro
que mortos falam.
*
Discurso sobre a existência do isqueiro
A certeza da existência de um isqueiro é como a dureza deste punho, que cerro. A consistência dessa certeza de existir, sob a camada de coisa orgânica, o isqueiro e a mão pegada a ele. A certeza de que, ao existir, propaga-se a insinuação de incêndio, e ilumina-se a hipótese de que a mão, ao acioná-lo, descanse.
No fundo da mata escura vibra solitária a chama do isqueiro, como no fundo da noite da família brasileira, a conduzir por um caminho um rebanho, vibra a musculatura de uma mão masculina. Existe o isqueiro e existe a família brasileira no fundo de uma mata escura, à beira de um caminho. Sob camadas de coisa orgânica e gases abafados pelo peso úmido da noite, a família é como o isqueiro e o isqueiro possui seu próprio intestino. No fundo de seu intestino algo ilumina a rede de canais, e por entre camadas de matéria um brilho persiste. A cada isqueiro seu intestino, a cada família sua noite quente e úmida de fazenda. Sob os escombros de um intestino arruinado e coletivo, sob sua sombra melhor dizendo, achou-se uma noite o dispositivo de um isqueiro. A frase que o acionava permanecia desconhecida dos povos da floresta. À fazenda adjacente enviou-se emissário, cuja família mesma havia submergido na mistura de umidade e escuro que avançava com violentos sopros de calor e gases. O emissário arruinou a mensagem ao deflagrar um enxame de morcegos em cujos olhos reverberava a memória de incêndio e garimpo. A uretra de sua viagem contaminara a mensagem, a palavra, o gesto e a roupa. Chegou faminto ao alpendre, comeu. Caminhou pelos cômodos da casa, viu a nudez das filhas, discutiu normas de plantação e moagem. De volta, em suas mãos e vozes, vagavam ancestrais de animais queimados, que riram de sua genitália derrotada.
Ao contrário da família, contudo, o isqueiro é apenas seu próprio corpo e seu próprio fogo. A família o respeita e o traz junto às roupas, junto aos aventais, pregado à pele com tiras de tecido, ou entre as roupas e a pele, ou entre a sua pele e a dos filhos já nascidos, disputando espaços aos desenhos rituais. Ao contrário do isqueiro, cava na carne de um cavalo cego o seu próprio útero, como os antigos. Sua umidade faz com que a floresta e seus povos nativos a circunscrevam em ilhas e lodaçais, onde fazem refeições e conversam sobre os demais objetos do mundo. Ao contrário do isqueiro, portanto, que descansa em seu intestino durante a refeição da família e termina de existir apenas quando o último dos seus se apaga para sempre.
Abaixo do isqueiro o seu chão, a corrosão de ar que infinitamente volteia na catraca de seu mecanismo. Abaixo da família a rede de mananciais parados, sem circulação, onde o boi morto se comunica ao solo por meio de lesmas que escorrem convencidas por um mesmo argumento gravitacional. O isqueiro pergunta ao sábio o significado da família: acúmulo de bezerros esparsos, enquanto apenas ao tocá-lo, isqueiro, se fartam da caça esquiva, como burgueses de um filme mudo. Sob as roupas e as peles, os corpos individuais suam. Não é possível ver por quais poros, em pele assim tão opaca. O isqueiro, iluminando, os apaga. A cada intestino familiar um isqueiro que navega. E em seu próprio intestino o isqueiro cultiva a memória do lugar: massa cavada pela presença, cera baça e pardacenta expelida pelos poros ofuscados do corpo, colhão direito pendurado à entrada. A família consome os insumos. Mastiga com alvoroço o esperado. Parte depois de certificar-se do lodo e da presença de matagais. Parte fugindo da erva daninha da palha, do estrado dominado de formigas, da maçã ostensiva de um rosto.
No fundo da mata brasileira apaga-se com o isqueiro o indivíduo, seus livros, seu esperma. O indivíduo estirou-se no chão infestado, confundido com um objeto florestal. Deixou-se estar por uma noite, entre ferrões e marcos de fronteira. Perdeu o chapéu, a confusão de vigas esparramadas em apoio a aparatos de medição. O isqueiro em seu corpo o transportou à beira do território. Pelo rádio, disse à família que estava vivo, machucado, cercado de vegetação escura, mastigado por formigas, úmido e fraco. O som de vozes no rio o acomodou na folhagem. Lembrou que tomara vacina e que era saudável. Em sua mão esquerda o isqueiro se abriu.
*
Estudo para uma circuncisão
Descalço as botas feias
e as enfio no vazio
espaço sob a mesa.
Preparo gaze
éter
ouço os estalidos de aço
dos instrumentos.
A manhã sobe do chão
e a gente da casa
amontoa-se à porta.
A família observa
cada gesto
e vê na pele
que recobre
o pequeno
pênis
do filho
um invólucro
imprestável
um vômito de pele
poluída, vinda
sabe Deus
de que profundeza
do tempo, de que
antiga iniciação
na espessura da noite.
Essa sobra macia
de tecido deve ser
arrancada,
se necessário a dentadas,
para que nasça
a límpida flor subfísica,
o monótono
ouriço
preso à sua
circunferência
sempre externa,
nunca nua,
o fruto linear estrito.
O corte nunca é limpo,
mas a família respira
em uníssono quando termino.
Seu alívio preenche a sala
movimenta as cortinas
as mulheres sorriem
os homens distendem
o puro ânus cívico.
*
Estudo para uma carta
Ao contrário de tantos
companheiros, operários, dentistas,
técnicos em informática, estudantes,
desempregados, tantos semelhantes,
encosto a cabeça à noite
não em seu peito
mas junto à cabeça
de minha filha
para ouvir não as batidas do coração
mas o trabalhoso ranger da mandíbula,
a musculatura afeta
à língua, ponho o ouvido em seus cabelos
sentindo a dureza do crânio, o peso da matéria
que ele protege, tentando sentir o outro movimento
invisível dos impulsos dentro do cérebro,
da formação de passagens, conexões, redes
neurais
ouço por minutos
esse silêncio escondido sob o barulho das
brutas alavancas da deglutição
enquanto ela liquida
o leite quente
com voracidade tranquila e olhar fixo
na linha de luz que, sob a porta,
abre o envelope da penumbra.
*
Estudo para um compasso
Imerso na escuridão
o seu coração
é um fóssil vivo
de 267 gramas
feito de fibras
e resíduo
organismo
dentro do organismo
boca convexa
cujo idioma
é sempre o som
aveludado
do contrabaixo
de Gary Peacock
antes que Keith
ataque verticalmente
no tempo morto
essa língua
sim oca e côncava
que fala dentro
da cavidade
inumerada
o seu sermão
da montanha
bem-aventurado
o coração
dormindo
em seu lago
amaldiçoado seja
quem conseguir
despertá-lo.