Cinco poemas de Ruy Espinheira Filho
Poeta, romancista, contista, cronista, jornalista professor, Ruy Espinheira Filho nasceu em Salvador, BA, em 1942. Recebeu alguns dos principais prêmios literários do país, como, por exemplo, o Prêmio Nacional de Poesia Cruz e Sousa (1981); o Prêmio Rio de Literatura (2º lugar, romance), 1985; o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras, 2006; e, no mesmo ano, o 2º lugar do Prêmio Jabuti. Professor de Jornalismo e Literatura Brasileira, aposentou-se em 2010 do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia.
O primeiro poema integra o livro A canção de Beatriz, o segundo integra Elegia de agosto, o terceiro integra Memória da chuva e os dois últimos são inéditos.
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Campo de Eros
Amor: esta palavra acende uma
lua no peito, e tudo mais se esfuma.
E testemunho: eis que Amor deixou
ferida cada coisa que tocou.
E tudo dele fala: a mesa, a cama
(como abrasa este hálito de chama!),
o bar, cadeiras, livros e paredes
vivem, revivem: de fomes e sedes
a corpos saciados. Tudo fala,
tudo conta. Só a boca é que se cala.
Amor. Do extinto pássaro, o vôo
prossegue, inexorável. Mas perdôo,
eu, essa lâmina que me escalavra,
revolve em mim, em sua funda lavra,
amor, restos de amor, gestos quebrados,
enganos, mais amor, olhos magoados,
e fúria, e canto, e riso, e dança, e dor.
E a Quimera. E amor, amor, amor
por toda parte trucidado e em flor.
*
Soneto da negra
a Maria da Paixão
A cor da suavidade é que a modula.
Nela se abisma a luz e se revela
incapaz de alterar nada daquela
penumbra que a atrai, absorve, anula.
Nessa paisagem que coleia, ondula
como um rio, ou o mar (e é dela e ela),
um vento violento me desvela
um animal que me trucida e ulula.
O tom da suavidade não se altera,
eleva um canto cálido e me diz
que são garras de amor, e é bela a fera.
E assim, em carne rubra e cicatriz,
entrego à cor profunda que me espera
estes despojos em que sou feliz.
*
Canção de depois de tanto
a Roniwalter Jatobá
Vamos beber qualquer coisa,
que a vida está um deserto
e o coração só me pulsa
sombras do Ido e do Incerto.
Vamos beber qualquer coisa,
que a lua avança no mar
e há salobros fantasmas
que não quero visitar.
Vamos beber qualquer coisa
amarga, rascante, rude,
brindando sobre o já frio
cadáver da juventude.
Vamos beber qualquer coisa.
O que for. Vamos beber.
Mesmo porque não há mais
o que se possa fazer.
*
Soneto do puro silêncio
É muito puro este silêncio, tanto
quanto o teu riso que escutei outrora
em seus lampejos de luar e aurora
e que ficou em mim num suave espanto.
Puro silêncio… Assim tão doce quanto
aquela vida foi antes da hora
em que, também silêncio, foste embora
deixando a noite, o frio e o desencanto.
Tão puro este silêncio… E tua lembrança
de lua, de sol, de gestos de criança…
As tuas mãos, os teus olhos, nossas vidas…
Mas só memórias, que o tempo está morto,
como o riso tão claro. Como o porto
de que partiram minhas naus perdidas…
*
Dia primeiro
Neste primeiro dia do ano sente-se
um tanto vazio,
principalmente
de certas levezas e iluminações outrora recebidas
como dons liberados por descuido
pelos deuses.
E os anos vieram após os anos…
Ele se olha no espelho e pensa que,
seja como for, é novamente
primeiro dia do ano.
Depois, sim, depois,
o que for será.
O que ainda é um mistério…
Mas pelo menos de uma coisa pode estar certo:
a cada vez
vai poder ver mais claramente,
no espelho,
o rosto do seu fantasma.