Cinco poemas de Susy Freitas
Susy Freitas nasceu em Manaus, Amazonas, em 1985. É jornalista, professora, crítica de cinema e escritora. Publicou os livros de poesia Véu sem voz (Bartlebee, 2014) e Alerta, selvagem (Patuá, 2019), vencedor do Prêmio Violeta Branca Menescal, destinado ao melhor livro inédito de Poesia do Prêmio Literário Cidade de Manaus em 2018. Além de ter publicado poemas em diversas revistas e jornais literários, tem ensaios nos livros Documentário brasileiro – 100 filmes essenciais (Letramento, 2017), Animação brasileira – 100 filmes essenciais (Letramento, 2018) e Trajetória da crítica de cinema no Brasil (Letramento, 2019).
***
VOCÊ
Você é Napalm numa tarde tranquila.
Você sobrevoa poros.
Manson transposto de Corcoran.
Puro vestígio.
Saturno segura anéis nos dedos
e você gravita com o que tem:
pedaços de mulheres –
nossa poeira nossas rochas e nosso frio.
Canções pulsam no peito
numa lânguida linha de baixo
que infla e abate o coração
no ritmo do que não posso evitar.
Você é o livro de receitas do anarquista.
Guantánamo a todo vapor.
Você é algo que simplesmente se apropria.
Como um imã – silencia.
*
ALERTA E SELVAGEM
Você vê aquela exata carta de navegação em chamas.
As cinzas dançam.
O eco – um reflexo
nas pupilas –
lento
dá a vez a pálpebras que represam
lágrimas que desfazem a imagem.
Você achava que tinha voz.
Você achava que tinha voto.
Mas os dias provaram ser uma
narrativa genocida na qual você
consegue golpear
apenas algumas palavras.
De certa forma você gosta disso –
Há pontes queimando.
Cartas jamais enviadas.
As apostas não são seguras.
O caminho está todo errado
como bem suspeitávamos.
Escolhas equivocadas –
chance zero de retomada.
Mas há pontes queimando.
Cartas jamais enviadas –
de certa forma você gosta disso
já que os anos sob o guarda-chuva
de tantas expectativas
refinaram o paladar pra destruição.
Você vê nossa carta de navegação em chamas
desenhada e consumida por forças imbatíveis.
Um fogo que ameaça mas conforta
machuca narinas que ressecam mas respiram realidade
para além da distorção que as luzes
projetam na profundeza.
Você é só um saco cheio de impurezas
mas cheio de ar.
Alerta e selvagem.
*
CONDOMÍNIO
Estranho essas manhãs
de janelas de televisão desligada.
As abelhas operárias
resfolegam sobre o pão e o leite
veladas por cortinas blackout
e um exército de yorkshires –
esculturas da classe média
no aguardo da próxima exposição.
No recorte das áreas comuns
etiquetas saltam das roupas
carros vertem desodorizante
e filhos obesos atestam soberania.
Isso – a hospitalidade como rito
no invólucro do elevador
a imutabilidade do gramado
caucionada pelos subalternos
a vida cem por cento regimentada
e o cárcere das crianças no play –
sobe numa náusea sem precedentes
na garganta do meu instinto voyeur.
*
CARNAVAL
Escuridão que chama escuridão:
essa sim é uma amizade perigosa
de sexos que seguem assentes
agulhas no toca-discos
agulhas na canela como alívio
alijo de convites no
barulho fundo
e vivo.
Nas noites ébrias
sorvemos algo amargo
que nos traz de volta
que nos despe agudos
à luz da cidade
à incerteza nos corpos
nos goles dos copos
no Bloco.
Manaus tira a roupa.
Sorri com uma mão
aperta o laço com a outra.
Te masca e cospe tal vaca.
Te quebra e abre tal casca.
Te bate com a colher
e tu mole e claro
gotejas.
Feto quebrado
no choro do
inverno invertido.
Desacelero.
Reacelero.
Tendões coxas ossos
empanados pela promessa.
A promessa
em que olhar morreu?
As pernas um nó nas poças.
A mão tonta em marcha.
A cabeça cevada em risos
retalha tua narrativa.
Estamos cheios de sangue e cenas
num mesmo drink:
Ele machuca – desce quente
e cala.
*
AMAZÔNIDA (I)
Não me pergunte
sobre o rio – eu
fui cozida
no pavimento – eu
nunca soube
nada do rio – além
dos meus sedimentos – do
abraço morno
do domingo
flutuante
e o cenário todo
sorve esse sentir.
Lá abraço o rio
que aperta tudo
num nado
devorado –
longe da margem
pra longe da tarde
não me confunda com esse lugar
nasci aqui – mas meu rosto mente
não toco o chão com propriedade
na negação – beijo – o rio sente
e o cenário todo
sorve esse sentir.