Cinco poemas de Wesley Correia
Wesley Correia nasceu em 21 de outubro de 1980, na cidade de Cruz das Almas, no Recôncavo baiano. Graduou-se em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS (2002), onde também cursou Mestrado em Literatura e Diversidade Cultural (2005). É doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia – UFBA (2015), tendo realizado Doutorado Sandwich na Universidade de Lisboa – UL (2014). É autor de Pausa para um beijo e outros poemas (Ed. Nova Civilização, 2006), Deus é negro (Ed. Pinaúna, 2013) e Íntimo Vesúvio (Ed. Pinaúna, 2017) além de dois inéditos: um romance e um de contos. Como poeta e ficcionista, tem participado de antologias publicadas no país e como ensaísta tem publicado títulos de crítica literária e cultural em revistas especializadas. Foi professor de Literatura Brasileira na Universidade do Estado da Bahia – UNEB e representou o Brasil, ao lado de outros poetas, no XI Festival Latino-americano (Colômbia, 2007). Em 2009, integrou a coletânea Carlos Drummond de Andrade, produzida pela Fundação SESC, com o poema “Estudo sobre café”. Atualmente é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA, onde coordena o Curso de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Raciais: Identidades e Representação – CPgEER. Seus poemas foram traduzidos para o inglês, espanhol e romeno.
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O Verbo usurpado
Para Conceição Evaristo
Reaver o Verbo
de nós usurpado,
moldá-lo
com mãos de poesia,
promovê-lo uterino
e no seu afeto mais íntimo
depositar a luz de nossos resíduos.
Devassar o Verbo
de nós usurpado,
lamber-lhe a boca
de muitos mistérios,
mordê-lo no gozo
e a ele se fundir
como que a tecer liberdades.
Mirar o Verbo
de nós usurpado,
plantar na sua paisagem inóspita
um outro horizonte,
feito do revés do silêncio
de quando nos arrancaram a língua.
Desanuviar o Verbo
de nós usurpado,
expurgá-lo dessa espessa garganta,
prenhe de desejos,
e contemplar a ranhura
que seus pés dançantes realizam
na roda do Tempo.
Sangrar o coração do Verbo
de nós usurpado,
ser fluxo descontínuo
em suas entranhas,
ser dele o transe
e remover-lhe a tez opaca:
anoitecê-lo, salvá-lo.
*
Questão de vala
Resiste, ainda, à pólvora odiosa
o corpo abnegado de Marielle,
o corpo compassivo, suspenso em flor.
Resiste a espumosas rotas de sangue
inscritas em mares de horror,
resiste à vida abreviada,
esquecida entre as histórias
de tantas vidas preteridas.
Seja, enfim, questão de vala:
quanto fala
a bala
que em nós cala?
Não pode conter o chumbo certeiro
o corpo abnegado de Marielle,
não pode conter os projéteis
que se desviam dos prédios da zona sul,
que se afastam dos carros de luxo,
que contornam os bem nascidos,
e vão alijar uma outra existência
já tão relegada à negação,
já tão calejada de nãos.
Seja, enfim, questão de vala:
quanto fala
a bala
que em nós cala?
E se assim vive, embora varado,
o corpo abnegado de Marielle,
o corpo compassivo, suspenso em flor,
é porque aprendeu a enganar o fim,
tendo de suportar a dor mais doída
e se alimentar de si nos dias de fome,
teve mesmo de tatuar o etéreo nome
na carne viva da memória
a que nenhum fuzil pode matar.
Seja, enfim, questão de vala:
quanto fala
a bala
que em nós cala?
*
Imaginário
Pende entre minhas pernas pretas
um mito gorduroso,
quase impossível de carregar.
E na sua plena atividade,
na diabólica plasticidade,
me arqueia o dorso,
me alquebra o corpo
até interditá-lo.
E na sua robustez de mito,
me debilita a frágil saúde
ainda mais,
nas suas dimensões de mito,
me diminui a forma
ainda mais,
na sua centralidade de mito,
me reduz a toda solidão
do cais.
Por isso, não morram
se eu resolver
extirpa-lo amanhã.
É que minhas pernas pretas
marcham melhor
sem o seu peso incômodo,
minha cabeça preta
se equilibra melhor
sem o seu peso incômodo,
todo meu corpo preto
se ergue maior
sem o seu peso incômodo.
*
Corpo morto de meu pai
Sobre o corpo morto de meu pai,
os muitos lapsos desintegraram
e toda consciência se elevou diáfana,
na tarde de um domingo sem fim.
E tão imorredouro era o corpo sem vida,
tão farto o sangue na carne insepulta,
que nem o fluxo do soro estancava
(pouco convencido das veias jazidas),
nem a bexiga morta deixava de mijar.
E tão esfuziante era o corpo morto
na rubra intimidade a apodrecer,
que as paixões mais assombrosas do mundo
desejaram ali se abrigar:
suplantado estava o indefinível hiato político,
também o preço do gás,
o vigor dos verbos guardados,
o ranger das portas, o cão mudo com fome,
também as provas de amor,
também toda lágrima e todo riso,
também qualquer presságio
ou sintomas de beleza distante
ou qualquer “como vai?”
a fulgurar na manhã vulgar.
Somente a humanidade incauta
que exalou do corpo morto de meu pai
é o que é para sempre.
*
Duplo
Para José Carlos Limeira
Meu corpo filtrava desesperos e alegria,
se insurgia no coração das horas livres.
Meu corpo evadido resultava de coragens múltiplas,
de ternuras errantes, e eu te invocava
sob o afeto das paixões conjugadas.
Solto, grávido de tanto horizonte,
meu corpo vibrava em vermelho,
fazia a roda dançar no ritmo primordial.
Dispunha o fértil ouvido à palavra fecunda
e, combatente, eu te invocava no brilho da navalha.
Me embrenhava por matas noturnas,
abrigava tua luz em minha boca,
lambia o segredo puro dos céus
e sentia escorrer o signo libertário, motor da existência.
Ia te pedindo a bênção enquanto
agradecia por tantas inconsciências,
mergulhava fundo, abocanhava doze búzios,
ali me adivinhava na forma viva da força.
Assim despachado, sentia os ossos tornarem aço,
a pele do corpo, descolando-se da carne, virar rocha,
e a gordura, que havia no íntimo, verter a lava do vulcão.
Enquanto toda Memória se espelhava
e eu me integrava ao sonho,
via, perplexo, se compor esse meu duplo
num encantado monumento de linguagem.